Direto ao Conto - 7



NOVAS EVIDÊNCIAS

Minha aspiração era ser escritor, mas não! Sou policial. Ao invés de palavras, reúno provas, salpicadas sem nexo pelas cenas dos crimes. Pinço substantivos e os empacoto, etiqueto e catalogo. Colho depoimentos, mas não cultivo narrativas. Ao contrário, as desmonto. Depois remonto, deixando de fora qualquer vestígio autoral. Ouço vozes ativas e passivas, estapafúrdias, ameaçadoras, apavoradas, rancorosas, meliantes... Exerço uma datilografia disléxica, despreocupada com eventuais revisores xeretas. É assim que registro crimes gramaticais e atentados ortográficos. Laudos periciais, boletins de ocorrência, relatórios de inquérito, alegações... São os formatos literários que me cabem.
        Participei, certa vez, de uma reconstituição muito comentada. Foi meu ápice narrativo. Senti-me um diretor de cinema, apontando minhas lentes subjetivas na direção da materialidade. Derramando luzes no encalço da ação. Gritando cortes para desencadear verossimilhanças. Girando as moviolas da verdade para congelar os mínimos flagrantes lógicos. Então, voltei a ser policial. A pisar os chãos ensanguentados. A tentar não ser enganado pelas aparências. A me proteger atrás dos escudos da burocracia.
        A vítima e o algoz são meus personagens recorrentes. Ela, sempre emudecida. Ele, sempre tagarela, regurgitando desculpas e justificativas. Ela, uma delatora, mas por mensagens criptografadas. Ele, dissertador de verdades críveis e prováveis. Cabe a mim mediar esse embate constante, que segue arrastado, round após round, para terminar em nocaute. Nada de gongos providencias. Nada de toalhas jogadas no chão. Para um bom policial, vitórias por pontos são sempre vexatórias!
        Deste lado do ringue, Dona Alba, 79 anos, viúva desde os vinte e poucos, mãe de três e avó de cinco. Deste outro lado, Paçoca, 27 anos de vagabundagem, analfabeto funcional e larápio convicto. O reconheci assim que pisei na cena do crime. Já havia lhe dado voz de prisão uma dezena de vezes. O ferimento na perna esquerda, que o tornara manco, quem causou fui eu. Meti-lhe um tiro durante uma ronda, quando o flagrei carregando um aparelho de televisão por um beco escuro. Dona Alba? Não a conhecia. O bairro inteiro, porém, sabia tudo sobre ela.
        As vidas de Dona Alba e Paçoca devem ter se cruzado em diversos momentos. Na porta da igreja: ele nos braços da mãe acocorada em pose de pedinte, ela indignada com essa gente que só sabe fazer filhos. Na feira: ele camuflado entre os pivetes velozes, ela usando a mão livre para proteger a bolsa a tiracolo. No desfile de Sete de Setembro: ele coletando carteiras entre a multidão, ela na ponta dos pés admirando o neto de passo sincronizado.
        Paçoca não era sarcástico, mas por falta de sofisticação. É preciso admitir: jamais se fez de vítima. Era perverso. Sabia-se sem conserto, vagando por um mundo avariado. Competitivo, sempre deixava para rir por último. Foi trancafiado várias vezes, mas nunca por mais de um mês. Aprisionado num loop infinito de reincidências, entregava-se com prazer à desfaçatez. O pouco que tivesse a perder, ele mesmo dava como perdido de antemão, só para não dar esse gostinho a quem quer que seja.
        Dona Alba também mancava. Seu ferimento na perna direita havia sido causado há cinco anos, por um motoqueiro imprudente. A velha temperamental ficou desconjuntada e jamais recuperou a estampa altiva de mulher forte, impulsiva e independente, que virou dona de pensão para criar os filhos. Pajeou hóspedes, forneceu café da manhã, preparou almoços, cuidou da limpeza... Permaneceu na viuvez por comodismo. As noras podem ter levado seus filhos, mas jamais se apoderaram da sua preponderância. Acostumou-se com a solidão a preencher os espaços do seu casarão, agora ocupado apenas pela aposentadoria. Sempre detestou bichos de estimação.
        O penúltimo encontro dos dois capengas também deve ter sido fortuito. Ela, puxando seu carrinho de compras ladeira acima. Ele, fumando seu baseado ladeira abaixo. Ela, cansada e entretida com a distração. Ele, ligado e afoito com os cálculos de oportunidade. Alinharam-se na mesma síncope. Paçoca seguiu Dona Alba com os olhos e mediu seus gestos de retirar as chaves da bolsa, destrancar a porta e sumir no velho casarão com fachada rebocada de desleixo.
        O último encontro aconteceu no escuro da noite e foi premeditado. Paçoca não teve problemas em invadir pela janela da cozinha. Entendia tudo de gatunagens, mas não sabia nada da velhice. Madrugadas não são para dormir, mas para remoer lembranças e ocupar-se com arrumações redundantes. São para vagar feito assombração, carregando cestos com roupa suja, potes de picles e vasos, que se quebram ruidosos quando largados no susto.
        Dona Alba teve tempo de berrar e entrar correndo no quarto. Escandalosa, só pensou em acordar a vizinhança. Paçoca veio atrás. Só queria silenciá-la.
        Cenas de crime são gritantes, mas se desmancham com facilidade. Não se pode ir entrando assim, sem mais. Há uma liturgia a seguir. Desabotoar o paletó, cofiar a barba, esquadrinhar todo o recinto enquanto apoio a mão na fivela do cinto, deixando a arma a mostra. Costumo não iniciar com perguntas. Prefiro deixar que os depoimentos brotem espontâneos. O sentimento de culpa tende a causar precipitações. Esse truque sempre funciona:
        – Como eu ia imaginar que o idiota invadiria desarmado? – torturou-se Dona Alba, ensaiando um desabafo.
        A velha senhora se levantou com dificuldade, pôs a mão nos quadris e foi até a cristaleira. Pegou uma xícara e a colocou sobre a boca da garrafa térmica com café, que ficava de prontidão sobre o balcão. Três apertos no sifão foram suficientes. Só depois de saborear o primeiro gole ela percebeu a própria falta de hospitalidade:
        – Aceita?
        – Sim, obrigado – devolvi a educação.
        Enquanto Dona Alba repetiu todo o trajeto entre a xícara é o café, aproximei-me do corpo de Paçoca, estendido na cozinha, quase na porta que dava para o corredor.  A velha nem precisou de boa pontaria. Mirou no peito e disparou sua espingarda a curta distância. Fez uma ilha de Paçoca cercada de sangue por todos os lados.
        Enfiei a mão no bolso esquerdo do meu paletó e peguei o 38 de cano curto que trago como sobressalente. Número de série raspado, sem registros... Benefício por insalubridade pelos serviços prestados em incontáveis rondas noturnas. Vantagem de ser policial! Do outro bolso tirei um lenço, que usei para limpar a arma com cuidado. Depois, só precisei me agachar e plantá-la na mão daquele bom vagabundo.
        Dona Alba veio com a xícara de café e só então se deu conta do meu método peculiar de investigação. Encarou-me nos olhos, descrevendo um ponto de interrogação com as sobrancelhas.
        – Invasores idiotas também portam armas, não é mesmo? – Levantei-me e tomei a xícara da sua mão. O café recém coado estava fumegante, aromático, reconfortante...
        A velha senhora continuou me encarando nos olhos por alguns vários segundos. Não faço ideia de que tipo de filme ela projetou na mente. Deve ter sido um com final feliz. Depois, desviou o olhar e retomou a hospitalidade.
        – Ah, acabo de me lembrar: fiz um bolo de fubá hoje à tarde. Combina demais com café. Aceita?
        – Sim, obrigado.
        Sou policial, mas um que já perdeu as aspirações literárias. Um que já não se importa com a precisão das palavras, que despreza entrelinhas, sacaneia a sintaxe... Um que não dá ouvidos aos grunhidos das vozes ativas e passivas, nem liga para as discrepâncias gritantes. Só escrevo laudos periciais, boletins de ocorrência, relatórios de inquérito, alegações...
        Pensando bem, acho que vou escrever um livro, mas de receitas! Vou começar com a desse bolo de fubá. Dona Alba deve acrescentar queijo ralado, leite de coco... Sei lá! Preciso investigar.

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