Dúvida: na disputa pelo poder, há mais espaço para as certeza

Cena do filme Dúvida
Dúvida: direação de John Patrik Shanley

DUELO ENTRE CINEMA E TEATRO

O suporte audiovisual do cinema oferece uma experiência sensorial que tende mais para o realismo. O suporte audiovisual do teatro promove mais o fantasioso. O que vemos na tela, vem direto do mundo como o conhecemos. O que vemos no palco, precisa ser intermediado pela imaginação. É claro, isso tudo a grosso modo! Cinema e teatro são igualmente aptos a contar todo tipo de histórias, mas se valem de linguagens diferentes. Oferecem produtos culturais diferentes, ainda que compartilhem diversos recursos narrativos.
        Talvez o principal ponto de interseção entre o cinema e o teatro seja o ator. Na tela ou no palco, é ele quem comanda o espetáculo – na percepção do espectador sentado na plateia, bem entendido. Os profissionais da atuação sabem, no entanto, que uma performance teatral exige recursos diversos daqueles que empregarão numa performance cinematográfica. Descer aos detalhes pode ser enfadonho para o cinéfilo que chegou até aqui, interessado apenas em saber mais sobre o filme Dúvida, dirigido em 2008 por John Patrick Shanley. Por isso, não me aprofundarei. Apenas avisarei que tal introdução tem um motivo: lembrar que o filme Dúvida é uma adaptação da peça de 2004 intitulada Dúvida – Uma Parábola, escrita pelo mesmo John Patrick Shanley que escreveu e dirigiu a adaptação para as telas.
        Isso explica o forte sotaque teatral que caracteriza o filme. Há uma predominância da dramaturgia, em detrimento ao envolvimento visual que a sétima arte se propõe a irradiar – ainda que a excelente fotografia de Roger Deakins venha para encher os olhos do espectador. Dúvida está mais para o texto, preciso e afiado, escrito para fazer pensar. É mais cerebral do que emocional. Está mais nas mãos dos atores do que nas do diretor. Está mais interessado em trilhar os caminhos do Óscar do que encontrar soluções narrativas apropriadas para a adaptação.
        Dúvida se desenrola em 1964, na escola paroquial de uma igreja católica localizada no bairro nova-iorquino no Bronx. O pároco, padre Brendan Flynn (Philip Seymour Hoffman), faz um sermão provocativo sobre a dúvida e afirma que ela pode unir as pessoas, tanto quanto o seu exato oposto, a certeza. A rígida e sisuda irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep), diretora da escola, está mais interessada em exercer o controle rigoroso sobre o dia-a-dia da comunidade. Ela encontra um motivo para suspeitar do padre: parece que ele desenvolveu um certo interesse por um dos seus pupilos, o garoto Donald Miller (Joseph Foster) – o primeiro e único aluno negro da escola. As suspeitas foram levantadas pela irmã James (Amy Adams), professora de história, que flagrou os dois em uma reunião privada. Ainda que a delatora tenha dúvidas sobre a ocorrência, a Irmã Aloysius fica municiada de certezas. Passa direto para o ataque contra o padre Flynn, num jogo de gato e rato que só poderá terminar com a derrocada completa de um dos oponentes.
        Ao contrário do que imaginamos de início, Dúvida não vai se ocupar dos desdobramentos de um caso de pedofilia, como os que macularam a igreja católica nos Estados Unidos e foram investigados em filmes como Spotlight – Segredos Revelados. Este longa é muito mais sobre as dúvidas e certezas que são arregimentadas em lados opostos numa disputa pelo poder. A irmã Aloysius não tem dúvidas: o padre é culpado, ainda que pareça inocente e ainda que a irmã James não tenha certezas que possam ratificar suas suspeitas. Mas isso não importa. Decidida a manter-se no poder, ela irá até o fim, para desespero do padre Flynn, que se sabe vulnerável diante de um escândalo que destruiria sua reputação e sua carreira.
        Eis aqui uma história provocativa, que funciona bem no teatro, onde seus personagens desenhados em contornos pouco definidos sequer precisam ser vistos contra um pano de fundo para se destacar. No cinema, no entanto, sentimos falta de mais sustentação. A escola, os alunos, os professores, a paróquia, as exigências do mundo exterior... Tudo o que ajuda a compor o meio onde o conflito se desenrola, e pode interferir no seu resultado, clama por mais nitidez. É a tal veia realista que emana do suporte audiovisual cinematográfico. O diretor John Patrick Shanley não se preocupou com isso e decidiu ser mais dramaturgo do que cineasta. Preferiu focalizar o duelo entre seus atores e manter a atmosfera teatral.
        Com um elenco de notada competência, tal decisão deve ter surgido naturalmente. Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman se agigantam na tela e entregam atuações memoráveis. Ela irradia uma certa veia caricata – inclusive cômica no começo, para contrastar com a estampa áspera que assumirá no final – e se apresenta como se estivesse no palco. Ele, mais natural e atento às microexpressões, é mais cinematográfico. Ambos se esbaldam na densidade do luxuoso texto que podem recitar.
        Amy Adams entra no jogo com competência. Levanta a bola na altura certa para os cortes precisos dos dois protagonistas. Já Viola Davis, que participa durante poucos minutos na pele da mãe do aluno jogado no meio do conflito, consegue ser voz emocional do filme. Sua presença é arrebatadora e magnética, a ponto ser indicada para a disputa pela estatueta de melhor atriz coadjuvante no Óscar.
        No final das contas, é disso mesmo que se trata: a tentativa de passar pelo processo de seleção natural que impera no meio ambiente hollywoodiano. De certa forma conseguiu. Dúvida foi indicado para cinco estatuetas – quatro para seus atores e uma para o roteirista. Não levou nenhuma. O diretor John Patrick Shanley, americano de origem irlandesa e católico, que já havia escrito diversos roteiros para o cinema – entre eles Feitiço da Lua – não obteve o mesmo reconhecimento que alcançou no campo da dramaturgia. No duelo entre o teatro e o cinema, quem perdeu foi o último. Mas isso não compromete a qualidade do filme. É gratificante poder assistir a uma obra atemporal, densa, com estofo intelectual e recheada de atuações marcantes. Está muito acima da média das produções que tentam conquistar nossa atenção. Vale a pena conferir!

Resenha crítica do filme Dúvida

Título original: Doubt
Ano de produção: 2008
Direção: John Patrick Shanley
Roteiro: John Patrick Shanley
Elenco: Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis, Joseph Foster, Alice Drummond, Audrie J. Neenan, Helen Stenborg, Mike Roukis, Lloyd Clay Brown, Frank Shanley, Frank Dolce, Paulie Litt, Matthew Marvin, Bridget Clark, Molly Chiffer, Lydia Jordan, Susan Blommaert, Carrie Preston, John Costelloe, Margery Beddow, Marylouise Burke e Jack O'Connell

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