O Assassino: adaptação de uma ótima HQ francesa

Cena do filme O Assassino
O Assassino: direção de David Fincher

UM PROTAGONISTA ABJETO, CAINDO EM CONTRADIÇÃO

Cinema e histórias em quadrinhos sempre se resvalaram. Há pontos de intercessão entre ambos, que funcionam como estímulo para os artistas interessados em expandir seus recursos narrativos. Will Eisner experimentou planos cinematográficos que depois inspiraram cineastas. Stan Lee alfabetizou o público na linguagem que agora domina o cinema de ação. Frank Miller expropriou a articulação narrativa do cinema noir... Inúmeros artistas foram além das idiossincrasias e estabeleceram novas maneiras de contar histórias.
        É nas diferenças entre as duas formas de arte, no entanto, que encontramos os grandes rompantes artísticos. A trilha sonora como condutora da jornada emocional do espectador, a decupagem dos movimentos para ampliar a acuidade visual do leitor, o distanciamento da tela e a proximidade tátil no virar de cada página, os cheiros da pipoca e do papel... Criar para o cinema e para os quadrinhos são aventuras distintas.
        Os quadrinhos resultam em obras mais abertas, em contraposição ao pacote mais fechado que o cinema nos entrega. Por isso, adaptações de um formato narrativo para outro sempre resultam em perdas e ganhos. Os grandes artistas, porém, jamais de incomodam com o placar final. É o caso de David Fincher, com seu O Assassino, filme realizado em 2023. Trata-se da versão para o cinema da graphic novel de mesmo título criada em 1998 pelos franceses Alexis Nolent e Luc Jacamon. Os apreciadores dos quadrinhos ficam na expectativa de respirar a mesma atmosfera intimista que já conhecem. Já os cinéfilos, apostam no estilo descolado do diretor e suas provocativas reviravoltas no final.
        O que O Assassino consegue matar são os paradigmas! É preciso que se diga: trata-se de um filme B – rótulo que os especialistas dão às produções ligeiras, de baixo orçamento e sem o brilho das estrelas consagradas, mas que tento empregar aqui sem a mesma conotação pejorativa – consigo lembrar de inúmeros filmes B deliciosos, especialmente dos anos 1970 e 1980, que se tornaram cult. Personagens em profundidade? Esqueça! Reflexões filosóficas sobre a vida e a morte? Negativo! Trata-se apenas de entretenimento, vitaminado com doses de refinamento estético.
        No cinema, um personagem tende a ganhar contornos mais realistas, dada a natureza audiovisual do suporte narrativo. Isso dissolve parte do seu encanto e limita a viagem fantasiosa do espectador. Em O Assassino, o rosto sem traços definidos nos quadrinhos ganha as feições marcantes de Michael Fassbender, enquanto a passagem do tempo, medida em intermináveis segundos, acontece a mando de um diretor sem piedade de abusar da nossa paciência. Mas damos um desconto, afinal, trata-se de David Fincher, que filma o roteiro assinado por Andrew Kevin Walker, que também escreveu Se7en - Os Sete Crimes Capitais.
        Acontece que o protagonista de O Assassino é um psicopata abjeto. Um criminoso frio e impiedoso. Um sujeito sem conteúdo, que não cultiva sua individualidade e se limita a emitir respostas robóticas, programadas pelo instinto. Alguém a quem jamais teríamos coragem de direcionar nossa empatia. No cinema, um personagem assim está mais para um fardo a ser carregado pelos realizadores. Por isso, as acertadas decisões narrativas tomadas por David Fincher elevaram a qualidade do filme. Antes de falar sobre elas, é melhor estabelecer a sinopse:
        O Assassino flagra um experiente matador de aluguel (Michael Fassbender) de tocaia, em pleno exercício da paciência, enquanto aguarda o momento em que seu próximo alvo estará ao alcance do seu rifle de precisão. Por uma fatalidade, ele erra o tiro, mas consegue escapar. Seu erro, porém, tem consequências. Ele volta para o seu esconderijo só para descobrir que sua namorada quase foi morta em retaliação. Agora só pensa em descobrir a identidade dos culpados e eliminar um por um dos envolvidos. E isso inclui seu advogado (Charles Parnell), uma misteriosa assassina nova-iorquina (Tilda Swinton) e o cliente que encomendou o assassinato frustrado (Arliss Howard).
        David Fincher planejou adaptar essa história em quadrinhos em 2007, mas abandonou a ideia depois de se envolver em outros projetos. Em 2019 ele o retomou, sugerindo ao próprio Alexis Nolent que desenvolvesse um roteiro estruturado em cinco atos. Mais tarde o diretor envolveu Andrew Kevin Walker, que aceitou o desafio de escrever um novo tratamento, onde o protagonista teria apenas dez linhas de diálogo durante o filme inteiro.
        O Assassino, no entanto, não é um filme lacônico. Há muito texto, escrito com talento e precisão, para sustentar uma narrativa fluente, ancorada no visual. Depois do primeiro corte bruto, Fincher achou necessário acrescentar mais narração, para construir o personagem e criar a exposição para pôr o espectador a par da trama. Mas o protagonista não direciona seus pensamentos diretamente para o público. O faz para si mesmo! Em uma ótima sacada criativa do roteirista, ele recita um mantra, que o mantém focado e revela sua obsessão e patológica.
        Nos quadrinhos, o texto de Alexis Nolent desvenda a filosofia do matador. Vale-se de citações de diferentes pensadores para refletir sobre a violência, enquanto deixa o visual contar a história. No filme, o texto de Andrew Kevin Walker precisa encontrar o ponto de equilíbrio entre a exposição e o silêncio, para conseguir um resultado natural. O que vemos é o protagonista cair em contradição. Ele trai as próprias crenças e revela que a tal filosofia do matador e uma... conversa para boi dormir! David Fincher deve ter se divertido muito realizando O Assassino, principalmente na hora de acrescentar a trilha sonora infestada de canções da banda The Smiths.
        Certo, cinéfilo, você ainda deve estar se contorcendo porque ousei rotular um filme de David Fincher com a letra B. É porque não posso colocá-lo no mesmo patamar de obras como Clube da Luta, Se7en - Os Sete Crimes Capitais, O Curioso Caso de Benjamin Button, Mank ou Vidas em Jogo. Por causa do conteúdo, não da forma! O Assassino é um ótimo filme, divertido, ágil, moderno e envolvente. E tem a Tilda Swinton fazendo uma aparição magnética e decisiva. Vale a pena conferir.

Resenha crítica do filme O Assassino

Título original: The Killer
Ano de produção: 2023
Direção: David Fincher
Roteiro: Andrew Kevin Walker
Elenco: Michael Fassbender, Tilda Swinton, Charles Parnell, Arliss Howard, Kerry O'Malley, Sophie Charlotte, Emiliano Pernía, Gabriel Polanco, Sala Baker, Monique Ganderton, Daran Norris e Jack Kesy

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