Brazil – O Filme: uma distopia inspirada em George Orwell

Cena do filme Brazil - O Filme
Brazil - O Filme: direção de Terry Gillian

QUANDO MONTY PYTHON ENCONTRA GEORGE ORWELL

No Brasil do começo dos anos 1980, o humor anárquico do grupo inglês Monty Python não era popular. Poucos tiveram a oportunidade de assistir no cinema ao filme Monty Python em Busca do Cálice Sagrado. Com o advento dos videocassetes, as fitas com os programas de TV da trupe britânica apareceram nas locadoras e ajudaram a atrair espectadores para as salas de exibição, quando chegaram os filmes A Vida de Brian e Monty Python – O Sentido da Vida. Na época, poucos enxergaram a conexão entre esses títulos e Brasil – O Filme, dirigido em 1985 por Terry Gillian – aliás, uma conexão sutil e se a menciono aqui, é apenas para criar um efeito narrativo.
        Acontece que Terry Gillian, o diretor, foi um dos integrantes dos Monty Python – o único americano do grupo. Como cartunista, contribuiu com as animações que permeiam os filmes da trupe, além de ter colaborado nos roteiros e na direção. Na posse dessa informação, o espectador que se animava a assistir a Brazil – O Filme não deveria se surpreender com a anarquia e a estética rebuscada que oferecia. O problema é que havia outro elemento incômodo, que ajudou a criar confusão e gerou certa decepção: o título.
        Para nós, brasileiros, um filme chamado Brazil – O Filme só podia ser uma crítica aos desmandos autoritários dos militares estatizantes, que na época eram os ditadores por aqui. Estávamos errados! Por excesso de vaidade, pensamos que Hollywood finalmente havia prestado atenção em nós. Só que o título foi uma escolha aleatória de Terry Gillian. O diretor conta que estava em Port Talbot, no País de Gales, uma cidade literalmente cinza, graças ao pó de minério de ferro que a cobre por inteiro. Entardecia quando ele viu um sujeito na praia encardida, que ouvia no rádio a canção Aquarela do Brasil. Pronto! Encontrou o título que procurava.
        Acontece que seu filme era para se chamar 1984 ½, uma dupla homenagem: ao romance 1984 de George Orwell e ao filme , dirigido por Federico Fellini. Porém, meses antes, Michael Radford lançara o seu próprio 1984, uma adaptação mais fiel e contundente da distopia que ainda hoje nos assombra como um mau presságio. Brazil – O Filme foi inspirado na mesma obra, mas tenta lançar uma perspectiva mais moderna, ao mesmo tempo que assume uma coloração tragicômica. Vamos lembrar a sinopse:
        O filme se passa num futuro sombrio e conta a história de Sam Lowry (Jonathan Pryce), que trabalha numa repartição pública e sofre com a interferência de um estado autoritário e sufocante. Além disso, tem que aguentar o controle da mãe dominadora. Ele se apaixona por Jill Layton (Kim Greist), a mesma mulher que lhe aparecia em sonhos recorrentes, mas ela é confundida com uma militante terrorista. Sam e Jill passam a ser perseguidos pelo estado e suas vidas afundam na confusão. Perdidos em meio à burocracia disfuncional, tentam escapar com o uso de aparatos tecnológicos obsoletos. Num mundo onde nada funciona como deveria, Sam se agarra ao seu sonho escapista: é um guerreiro alado e poderoso, que tenta salvar a donzela em perigo ao som de Aquarela do Brasil!
        A história foi criada por Terry Gilliam, que escreveu um primeiro tratamento para o roteiro em colaboração com Charles Alverson – que jamais foi creditado por seu trabalho. Mais tarde, o diretor desenvolveu outros tratamentos com Tom Stoppard e Charles McKeown. O roteiro filmado terminou intrincado e complexo. Resultou num filme difícil de acompanhar, com incontáveis personagens que entram e saem de cena sem que suas conexões com a história fiquem claras. Ainda que a inspiração seja a distopia de George Orwell, o que vemos com mais nitidez são as idiossincrasias de Terry Gillian. E ao contrário do filme sisudo e austero que deveria ser, vem recheado de passagens irônicas e uma certa comicidade – um humor às vezes deslocado, para ser franco.
        Brazil – O Filme, ao contrário de 1984, contou com um orçamento polpudo. Ambos foram rodados praticamente nas mesmas locações, mas Terry Gilliam dirigiu um longa mais rebuscado, com uma fotografia elaborada e um design de produção minucioso – o diretor mostra que era mesmo fã de Fellini! Os cenários são vistosos, os efeitos especiais dominam o tempo todo e há cenas complexas, que demandam grande apuro técnico. O elenco é competente e conta com a participação luxuosa de um Robert De Niro que ainda ensaiava seus voos no campo da comédia. Mas o filme é fantasioso e conseguiu decepcionar muitos espectadores.
        Quem entrou no cinema em busca de paralelos com o nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, ficou sem respostas claras – ouvi especulações, que jamais se sustentaram. Quem esperava uma crítica aos regimes totalitários e à tirania do estado que passa por cima das liberdades individuais, não encontrou a necessária contundência. Quem esperava o humor inteligente dos Monty Python, ficou sem a fartura de gargalhadas. Brazil – O Filme é mesmo surpreendente: não foi feito para agradar o grande público, mas é cinema de qualidade, que demanda várias visitas para ser inteiramente apreciado.

Resenha crítica do filme Brazil – O Filme

Título original: Brazil
Título em Portugal: Brazil: O Outro Lado do Sonho
Ano de produção: 1985
Direção: Terry Gilliam
Roteiro: Terry Gilliam, Tom Stoppard e Charles McKeown
Elenco: Jonathan Pryce, Kim Greist, Robert De Niro, Katherine Helmond, Ian Holm, Bob Hoskins, Michael Palin, Ian Richardson, Peter Vaughan, Jim Broadbent, Brian Miller, Sheila Reid, Simon Nash, Barbara Hicks, Kathryn Pogson, Bryan Pringle, Derrick O'Connor, Elizabeth Spender, Derek Deadman, Nigel Planer, Ray Cooper, Gorden Kaye e John Pierce Jones

Comentários

  1. Primeiro, agradecendo a dedicação a elucidar um filme "complexo" mas já traduzindo: um diretor americano, integrante de uma trupe genial britânica e fã de Fellini.

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  2. Clint Anderson Eliot26/01/2025, 10:38

    A minha opinião NÃO irá agradar a muita gente. Vi esse filme com muita atenção. Desde quando foi lançado ouvi essa historia do "titulo escolhido de forma aleatória". Sinceramente isso nunca me convenceu. Será que se Terry Gillian tivesse visto aquele rapaz ouvindo -ao invés de "aquarela do Brasil" -a musica "surfin' USA" dos Beach Boys o nome do filme seria "U.S.A.the movie"? Sinceramente duvido...Minha opinião (e é só uma opinião -ninguém e obrigado a concordar) é que ele REALMENTE quis fazer um filme chocante e ao mesmo tempo pintar uma imagem grotesca do Brasil como muitas vezes é concebida no exterior -de pais ignorante, irresponsável, caótico, neurótico e violento -ainda que misturada com elementos de fantasia onírica . O filme faz referencia a muitas coisas infelizmente muito presentes no Brasil ate hoje. Tais como: a extrema corrupção, a burocracia, a insensibilidade o escapismo, o humor cínico diante da violência e a futilidade nos costumes. O filme até faz referencia a irresponsabilidade de cirurgiões plásticos charlatães que cobram altas somas só para deformar seus pacientes por imperícia -coisa que ainda ocorre muito em nosso pais até hoje. A própria musica "Aquarela do Brasil" -é usada na trilha sonora em partes da produção. Dizer que o filme não se refere ao Brasil é o mesmo que alguém desenhar uma caricatura do Silvio Santos e escrever embaixo dela o nome desse apresentador "e sair dizendo para todo mundo que a caricatura não se refere ao Silvio Santos e sim que é um desenho aleatório! O cinema internacional em diversas vezes representou o Brasil de forma negativa. As vezes as criticas NÃO são merecidas. Em outras infelizmente são sim. Por exemplo o filme "Turistas" ("Tourists") dirigido por John Stockwell de 2006 expõe um alerta sobre o perigo de estrangeiros visitarem o Brasil esperando encontrar um pais alegre, amistoso e descontraído e serem vitimas de sequestro e da máfia do trafico de órgãos . Na época até prejudicou a indústria do turismo por aqui. Poderia citar outros exemplos mas não vou me alongar demais. Quero observar que depois do filme "Brazil" de Terry Gilliam no ano de 1989 foi feito filme As Aventuras de Erik, o Viking ("Erik the Viking") dirigido por Terry Jones . Esse diretor e também o ator John Cleese que aparece na produção -por coincidência -ou não -eram ex-participantes do grupo Monty Python. Nessa aventura o herói desembarca com seus amigos numa ilha mitológica chamada de "Hy-Brasil" habitada por um povo meio amalucado e dirigida por um rei completamente doido. Há diversas piadas que parecem criticas a um certo pais da América do Sul. Não vou contar o final mas a atitude do rei ao fim do filme parece muito com o que ocorre no Brasil de hoje. Quem nunca o assistiu, confira! Obrigado.

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    1. Obrigado por acrescentar esses pontos. De fato, o Brasil nunca esteve muito bem na foto internacional. No cinema, bandido fugir para o Brasil é quase uma banalidade e nossa burocracia azeitada por doses exageradas de "jeitinho" sempre foi famosa. Mas já ouvi falar que a palavra Brazil carregava significados pejorativos antes mesmo da época dos descobrimentos. Ei aqui um bom assunto para pesquisar. Abraços!

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  3. Como sempre crônica impecável, quisera eu ser mais parecido com as comédias do Monty Python (que assisti todas) mas bom filme!

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    1. Obrigado, Rosa Fogel! Também esperava mais humor neste filme.

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