O Último Duelo: uma superprodução ousada

Cena do filme O Último Duelo
O Último Duelo: direção de Ridley Scott

UM DRAMA, TRÊS PONTOS DE VISTA

O Último Duelo, dirigido por Ridley Scott em 2021, é uma prova de que a sétima arte já não é mais a mesma. O filme tem DNA de cinemão e consumiu um orçamento polpudo, mas amargou um retumbante fracasso nas bilheterias – não arrecadou 20% do que os investidores aportaram. É um filme ruim? Longe disso! É cinema de primeira, bem realizado, com ótimas atuações e uma história envolvente. Mas o público não se dispôs a visitá-lo nas salas de exibição. Parece que, ultimamente, está mais cômodo ficar em casa e consumir as ofertas do streaming.
        Produções caras viraram artigos exclusivos para poucos cineastas – os Nolans, Camerons e Villeneuves da vida – ou restritos a temáticas infantilizadas – Godzillas, Coringas, Wolverines e Deadpools... Ousadias como O Último Duelo terão que se contentar com orçamentos modestos. O fracasso financeiro do filme é algo a se lamentar, pois arrefece o ímpeto daquela parte da indústria interessada em atender as demandas por cinema de qualidade, que parte dos cinéfilos mais exigentes.
        Esta superprodução é, sim, uma grande ousadia. Ambientada na França medieval, conta uma história real onde sobram violência e injustiça. Exibe cenas de batalhas sangrentas e tem um estupro no centro na trama. Almas sensíveis torcerão o nariz. Mas terão que admitir: é um espetáculo audiovisual impecável! Baseia-se numa obra de não ficção escrita pelo acadêmico americano e especialista em literatura medieval Eric Jager, a partir de pesquisas que realizou na Normandia e em Paris.
        O livro trata de um caso comovente registrado no final do século XIV, durante a Guerra dos Cem Anos, quando o cavaleiro Jean de Carrouges retorna de uma batalha e descobre que sua mulher, Marguerite, foi estuprada pelo poderoso escudeiro Jacques Le Gris. O casal denuncia o crime, mas o Parlamento de Paris e o próprio Rei Carlos VI determinam: a pendenga será decidida num duelo até a morte, onde o veredito será dado por Deus! Se o marido desafiante morrer, a esposa também será executada por falso testemunho. Simples assim.
        O livro de Eric Jager foi publicado em 2004 e desde então estava na mira de Hollywood, com vários diretores interessados no projeto de adaptação para o cinema. Finalmente a produção decolou com Ridley Scott no comando e a participação de Matt Damon e Ben Affleck como roteiristas. Seria o primeiro trabalho da dupla desde que escreveram o roteiro de Gênio Indomável, quando despontaram e catapultaram suas carreiras na indústria cinematográfica.
        A ideia do diretor foi brilhante: realizariam o filme nos moldes do que Akira Kurosawa fez no seu filme de 1950, Rashomon. Os cinéfilos antenados se lembrarão: trata-se da obra-prima do cineasta japonês, que narra o assassinato de um samurai e o estupro de sua mulher, a partir do relato de quatro testemunhas. Os mesmos fatos são apresentados quatro vezes, de pontos de vista diferentes e conflitantes. Qual deles representa a verdade objetiva?
        O Efeito Rashomon – como ficou conhecida essa técnica usada com frequência tanto no cinema como na televisão – caiu como uma luva para O Último Duelo, que foi dividido em três capítulos. Matt Damon escreveu o roteiro do primeiro e apresentou o ponto de vista do marido, Jean de Carrouges, que ele mesmo interpreta. Ben Affleck escreveu o segundo capítulo e mostrou o ponto de vista de Jacques Le Gris, interpretado por Adam Driver. Mas escrever o terceiro capítulo e mostrar o ponto de vista de Marguerite, vivida por Jodie Comer, seria uma tarefa bem mais complicada. Exigiria uma sensibilidade acima de tudo... feminina! Os dois preferiram recrutar a roteirista Nicole Holofcener, que trouxe consigo a experiência em filmes como em À Procura do Amor, Amigas com Dinheiro e Poderia Me Perdoar?.
        Bem, caro leitor, podemos falar agora sobre o ponto nevrálgico de O Último Duelo: o estupro de Marguerite e a asfixiante condição que as mulheres amargavam na Europa Medieval, quando eram tratadas como meros artigos de posse. A experiência feminina era irrelevante para os homens, esses sim, os protagonistas. Eram os seus feitos, atos e decisões que ficavam registrados para a posteridade – como os que foram recuperados pelo autor Eric Jager no Parlamento de Paris e revelaram os detalhes sobre dois duelistas. Marguerite, no entanto, não passava de um objeto de litígio. Nicole Holofcener precisou criar a personagem do zero!
        No seu ponto de vista, Jacques Le Gris achava que não havia estuprado Marguerite. Durante o ato, ela se comportou como qualquer mulher e ofereceu resistências protocolares, como o fizeram tantas outras que ele já possuíra. No seu ponto de vista, Jean de Carrouges achava que havia sido compreensivo e afetuoso com sua linda esposa Marguerite. Como guerreiro valente e valoroso, estava disposto a arriscar a própria vida para defender sua honra. No ponto de vista de Marguerite, a verdade vem à tona, mas não é conflitante nem contraditória. Traz diferenças sutis em relação às outras duas versões. Retira o véu sobre a personagem e mostra sua índole, seus valores, sua personalidade e as dores que experimentou durante o dramático episódio.
        O trabalho da atriz Jodie Comer é excelente. Se nos dois primeiros capítulos a sua beleza radiante é tudo o que nos salta da tela – filtrada pelos olhos da masculinidade – no terceiro ela ganha vida. Os astros que contracenam com ela dão conta do recado, mas tiveram o bom senso de orbitá-la. Matt Damon faz o truculento simplório, Adam Driver o refinado cínico e Ben Affleck o embriagado pelo poder. Na verdade, todo o elenco de O Último Duelo funciona como deveria.
        Quanto a Ridley Scott, sua direção é segura e criativa. As reconstituições de época são primorosas, as cenas de batalha são realistas e o duelo final entre os dois cavaleiros medievais é de tirar o fôlego. O Último Duelo tem conteúdo de sobra, para ser assimilado ao longo de muitas visitações. Para nossa sorte, ele está disponível nos serviços de streaming, onde podemos apertar o play sempre que bater aquela vontade de assistir a uma superprodução endinheirada, mas livre daquela baboseira infantil de super-heróis que contaminou a indústria do cinema.

Resenha crítica do filme O Último Duelo

Título original: The Last Duel
Ano de produção: 2021
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt Damon
Elenco: Matt Damon, Adam Driver, Jodie Comer, Ben Affleck, Harriet Walter, Alex Lawther, Serena Kennedy, Marton Csokas, Željko Ivanek, Tallulah Haddon, Bryony Hannah, Nathaniel Parker, Sam Hazeldine, Michael McElhatton, Oliver Cotton, Clive Russell, Adam Nagaitis, Bosco Hogan, Clare Dunne e Caoimhe O'Malley

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