O Artista: um filme mudo, eloquente e emocionante

O Artista: direção de Michel Harzanavivius
CINEMA NUM FORMATO HÁ MUITO ABANDONADO
O Artista, dirigido em 2011 por Michel Hazanavicius, é um filme mudo. Tem formato de tela mais estreito e é inteiro em preto-e-branco. Ou seja, é um filme como aqueles feitos até o final dos anos 1920. Um cinéfilo distraído talvez não se dê conta de que se trata de um produto do século XXI. O ritmo, os enquadramentos, a iluminação, a performance dos atores... Tudo parece genuíno, até que começamos a reconhecer alguns atores e atrizes frequentadores de filmes mais modernos. A grande pergunta que fica, então, é: por que raios alguém gastaria seu tempo realizando um filme... mudo?Quando dei o play em O Artista, já imaginava a resposta: seria por puro experimentalismo. Esperei ansioso pelo momento em que tudo viraria um divertido exercício de metalinguagem, com tiradas inteligentes e divertidas sobre o próprio fazer cinematográfico e sobre a evolução técnica que nos transformou em espectadores mais exigentes. No entanto, nada disso aconteceu! Mergulhei numa história sensível e emocionante, que roubou toda a minha atenção. Quando cheguei aos créditos finais, a verdadeira resposta surgiu cristalina: o motivo para realizar um tal filme foi simplesmente alcançar o regozijo estético! Fazer arte!
Imersos em nossa realidade digital, nosso impulso é o de considerar um filme mudo como uma obsolescência. Uma obra criada com parcos recursos, cujas limitações técnicas comprometem a expressividade. Nada disso! Cinema mudo é apenas um formato, diferente do filme falado, do telefilme, do cinema 3D... Os primeiros cineastas moldavam suas obras para que tivessem a melhor performance em salas de projeção que ainda serviam como teatros. Os de hoje já começam a pensar em filmes que caibam dentro dos nossos celulares. Estão sempre experimentando novos formatos.
O diretor francês Michel Hazanavicius, conhecido por seu trabalho em Agente 117: Uma Aventura no Cairo – uma provocativa paródia dos filmes ingleses de espionagem – não resistiu ao impulso de lidar com esse formato... jurássico. Pesquisou, assistiu a incontáveis filmes mudos e conseguiu financiamento para seu projeto original: trazer de volta à vida moderna um tipo de experiência cinematográfica que só encontramos nos museus. Escreveu o roteiro de uma comédia romântica que se passa na Hollywood de 1927 e narra a história de um astro do cinema mudo – como foram Erroll Flynn e Douglas Fairbanks – que tropeça no imperativo do cinema falado e descamba para o fracasso.
É possível especular que Hazanavicius buscou inspiração em Cantando na Chuva, o mais clássico dos musicais. Você talvez se lembre: Debbie Reynolds se apaixona por Gene Kelly, ao mesmo tempo em que tenta afinar sua voz para soar bem nos filmes falados, que estariam prestes a soterrar os filmes mudos, junto com todos os atores que fossem pegos desprevenidos. Mas antes de entrar nos detalhes, vamos examinar a sinopse de O Artista:
O filme conta a história de George Valentin (Jean Dujardin), um astro de cinema adorado por todos em Hollywood, dono de um sorriso aberto e franco. Em 1927 ele está no auge e projeta seu ego por todos os eventos em que participa, sempre acompanhado do seu fiel cãozinho Uggie. As fãs desmaiam e os homens o imitam. O problema é que o mutismo do cinema está com os dias contados e o ator reluta em encontrar uma voz que lhe sirva. No sentido oposto, aparece Peppy Miller (Bérénice Bejo), uma decidida aspirante a atriz que entende o imperativo do som e rapidamente alcança fama e fortuna. O envolvimento romântico entre os dois não decola, ao contrário, se perde em encruzilhadas. Veremos George Valentin despencar até o fundo do poço, enquanto torcemos para que o amor de Peppy Miller venha para finalmente resgatá-lo.
O Artista é uma comédia dramática. Lança um olhar afetuoso para os primórdios do cinema, mas não se perde em homenagens. O diretor está mais interessado em desvendar seus personagens em profundidade e usa todos os recursos narrativos que tem à disposição. E eles não são poucos! Para começar, temos a bela fotografia, captada originalmente em preto-e-branco por Guillaume Schiffman. O uso das luzes e sombras é preciso. Quando o protagonista é flagrado em seu auge, o contraste é vibrante e vigoroso. Na medida em que ele despenca, a escala de cinza predomina e a tela empalidece.
Apesar de realizar um filme mudo, o diretor soube lidar muito bem com a... música! A excelente trilha sonora assinada por Ludovic Bource é essencial para nos conectar emocionalmente com os personagens e com o desenrolar da ação. Logo nas primeiras cenas, Michel Hazanavicius nos coloca em uma sala de exibição e nos faz compreender que a presença de uma orquestra completa será permanente, para oferecer uma experiência sensorial que não pode ser consumida separadamente.
Outro recurso usado com sabedoria foi o figurino, assinado por Mark Bridges. Todas as peças de vestuário foram desenhadas para se encaixar na palheta de cinzas, que enche a tela com diferentes harmonizações em cada parte do filme. Roupas em tonalidades mais contrastantes ou esmaecidas são alternadas de acordo com o pano de fundo emocional de cada cena.
Michel Hazanavicius conta que lançou mão de um ardiloso truque narrativo: já que seu protagonista vive um declínio na carreira, o vemos descer escadas o tempo topo. O coitado até cai em areia movediça e desaparece lentamente. Já a estrela em ascensão está sempre subindo escadas. Em O Artista, encontramos muitas escadas por todos os cenários.
Porém, o grande trunfo de Hazanavicius foi mesmo o elenco que escolheu. Jean Dujardin tem uma estampa que parece ter sido talhada para o cinema mudo e seu desempenho arrebatador é hipnótico. Quanto a Berenice Bejo – que vem a ser esposa do diretor – também corresponde à altura. E ainda podemos ver atores como John Goodman, James Cromwell, Penelope Ann Miller e Malcolm McDowell se esbaldando com a oportunidade de exercitar o tipo de performance peculiar que era exigido dos atores mudos.
O Artista é um filme mudo delicioso! Fez por merecer todos os cinco Óscares que recebeu: melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor trilha sonora e melhor figurino. Mesmo os cinéfilos pouco familiarizados com o formato encontrarão motivos de sobra para se divertir, emocionar-se e alcançar algum regozijo estético. Vale a pena conferir.
Resenha crítica do filme O Artista
Título original: The ArtistAno de produção: 2011
Direção: Michel Hazanavicius
Roteiro: Michel Hazanavicius
Elenco: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, James Cromwell, Penelope Ann, Missi Pyle, Beth Grant, Malcolm McDowell, Joel Murray, Bitsie Tulloch, Ed Lauter, Jen Lilley, Nina Siemaszko, Basil Hoffman, Ben Kurland, Ken Davitian e Uggie
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