No Mundo de 2020: nos anos 70 a previsão era o caos total!

Cena do filme No Mundo de 2020
No Mundo de 2020: filme dirigido por Richard Fleischer

COMO NUM FILME, VIAJEI NO TEMPO!

Decidido a me tornar engenheiro, conforme era desejo do meu pai, entrei na então Escola Técnica Federal do Paraná, para estudar eletrônica. Era 1976, ano em que completaria 16 anos. Logo nas primeiras semanas de aula, o cineclube da escola exibiu o filme No Mundo de 2020 (Soylent Green, no original), uma produção de 1973 dirigida por Richard Fleischer, que mistura ficção científica e trama policial numa realidade distópica, mas apresentada como uma previsão factível.
        Inspirado num romance escrito por Harry Harrison, intitulado Make Room! Make Room!, o filme na verdade se passa em 2022, numa Nova Iorque entulhada com 40 milhões de habitantes – cinco vezes mais do que de fato tem hoje. Para alimentar tanta gente, num cenário caótico, o estado totalitário se vale dos tais Soylent Greens, tabletes de algas processadas, que se tornam a única refeição disponível para os cidadãos comuns. Acontece que o dono da indústria que produz o alimento é encontrado morto em seu apartamento. Entra em ação o detetive Robert Thorn (Charlton Heston). Ele fuça em assuntos que os poderosos preferiam manter sob sigilo e tropeça em verdades assustadoras. Simplesmente descobre que a humanidade se encontra em estado terminal.
        No Mundo de 2020 é um filme pessimista, estrelado por um Charlton Heston consagrado por sua participação em O Planeta dos Macacos, uma distopia de maior sucesso. Trouxe à tona a noção assustadora de que a explosão demográfica seria a desgraça do planeta. Mas fez questão de não apontar caminhos. Concentrou-se no drama de seus personagens e apresentou uma trama policial envolvente, ainda que previsível. Terminado o filme, o que não saiu mais da minha cabeça foi o seu título, que me obrigou a fazer as contas e chegar a uma conclusão estarrecedora:
        – Putz! Vou estar com 60 anos!
        Sentado na escada do pequeno anfiteatro – o cineclube estava lotado naquela tarde de sábado – tentei exercitar minhas habilidades de futurólogo, mas não tive sucesso. Não consegui imaginar como seria minha vida em 2020. Não consegui prever se estaria casado, se ainda moraria em Curitiba, se teria um emprego, um carro, uma casa... Só me veio uma única certeza, clara e indiscutível: estaria velho e enrugado. Seria um idoso!
        Distraí-me durante a projeção e acompanhei outras cenas que se passavam na minha mente. Enxerguei a mim mesmo de barba e cabelos brancos, andando com menos vigor, mais pensativo e prudente. Mais sisudo e menos afobado. Viajado, calejado e forjado. Fiquei curioso para saber detalhes sobre aquele homem velho e misterioso, mas logo soube que levaria uma vida inteira para conhecê-lo.
        Ao longo dos anos, nunca esqueci o título daquele filme. Para mim, 2020 passou a ser uma referência, uma espécie de ponto de chegada. Em vários momentos da minha vida esses números surgiram diante dos meus olhos, em tipos luminosos e garrafais, para denunciar a passagem do tempo. No dia em que conquistei o primeiro emprego que de fato valia a pena... Na primeira vez que botei os pés fora do Brasil... No momento em que segurei minha filha recém-nascida nos braços... Na cama com a mulher que amo, fazendo planos grandiosos... No dia em que nos mudamos para o nosso apartamento definitivo...
        Percebo agora o que de fato aconteceu comigo: fui capturado por uma espécie de conexão espaço-temporal, que me pôs simultaneamente em dois momentos: aquele que em 1976 me fez meditar e este, que me obriga a digitar palavras que escorregam com facilidade, porque vêm umedecidas pela emoção.
        Ao olhar para mim mesmo, sozinho na escada do cineclube, mas cercado de gente da minha idade, sinto-me em vantagem: conheço muito bem aquele garoto de quase 16 anos. Sei dos seus medos, dos seus desejos, dos seus planos. Sei quando ele vai acertar e onde vai errar feio. Sei das oportunidades que desperdiçará e da sorte que terá por conhecer as pessoas que o ajudarão a chegar em 2020.
        No momento em que deixei o cineclube, o relógio começou a correr. E correu ligeiro! Poucos meses depois meu pai nos deixou, vítima de um acidente nas estradas. Em um ano a vontade de ser engenheiro desapareceu. Dois anos mais tarde conseguiria meu primeiro emprego na publicidade – que estava longe de valer a pena. Em poucos anos conheceria a mulher da minha vida. Construiria minha própria família. Escreveria, desenharia, tocaria violão, assistiria a incontáveis filmes e... faria muitas e muitas caminhadas com a Ludy.
        Para mim, 2020 se tornou um ano emblemático. Estive conectado a ele por décadas. Sua chegada trouxe uma certa apreensão, afinal, foi ano em que completei 60 anos. Deixou de ser um ponto de chegada e se tornou um ponto de referência. Ficou apenas como termo de comparação. Por sorte as profecias do filme No Mundo de 2020 não se confirmaram – pelo menos não naquelas proporções catastróficas, ainda que a pandemia do Covid19 tenha assustado. Também não me tornei um sujeito sisudo e vagaroso. Embora tenha menos cabelo do que imaginei, estou longe de me sentir um idoso.
        Quando finalmente encarei o ano de 2020, me dei conta de que não tenho vocação para a futurologia. Aliás, ninguém tem! Quem poderia imaginar que uma pandemia traria desdobramentos tão desastrosos para as nossas liberdades? Tivemos que construir aquele ano dia após dia, como todos os que já vivemos e como os que haveremos de viver. Com esforço e paciência, com otimismo e esperança.
        Não faço ideia de como será a vida nos próximos anos, mas isso já não me preocupa. Estou adorando reconhecer no espelho esse sujeito que vem se revelando para mim ao longo da minha vida inteira. Além disso, quem garante que não acabo pego por uma nova conexão espaço-temporal, que me levara para outro filme? Oops... Quero dizer: para outro ano!

Resenha crítica do filme No Mundo de 2020

Data de produção: 1973
Direção: Richard Fleischer
Roteiro: 
Harry Harrison e Stanley R. Greenberg
Elenco:
Charlton Heston, Leigh Taylor-Young, Chuck Connors, Brock Peters, Paula Kelly, Edward G. Robinson, Stephen Young, Joseph Cotten, Mike Henry, Lincoln Kilpatrick, Roy Jenson, Leonard Stone, Whit Bissell, Celia Lovsky e Dick Van Patten

Comentários

  1. Fantástico vc ter uma data 2020 como limite e isso aos dezesseis anos. Eu sequer conseguia pensar 2 anos à frente dos meus 16. Muito interessante essa memória Fábio.

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  2. Não é uma data limite. É um horizonte, um ponto de comparação... Também acho fantástico caminhar por esses labirintos da memória. De repente a gente vai lembrando de coisas incríveis!

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  3. Fábio, como sempre vc escreve muito bem. E falar de outros tempos é sempre interessante.

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    1. Muito obrigado! Estou me esforçando para lapidar meus textos nesses posts diários no Facebook e também nas crônicas semanais aqui no blog. É um exercício e tanto!

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  4. Falei com o meu marido sobre este filme esta semana. Um filme q me impressionou muito. QQuisera ter

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  5. Naquela època um homem de 40 anos já parecia velho. Hj aos 60 ainda é jovem. Velhice começa a chegar aos 80!

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    1. Ah, a velhice! Ela está sempre rondando, mas insistimos em fazer de conta que não é com a gente!

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  6. Assisti esse filme em 1973, em Santo André-SP e fiquei muito impressionada também. Não me imaginei com 64 anos, mas quando 2020 chegou com uma pandemia na bagagem lembrei imediatamente do caos do filme e do caos que se tornou as nossas vidas.

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    1. Ah, o clima caótico que chegou junto com a pandemia pareceu mesmo replicar aquele que respiramos nesse filme. Não deu ara ignorar a coincidência de datas.

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  7. Eu acho que nós caminhamos para aquela situação. As pessoas não serão mais deixadas a passar fome e a ficar no relento. Mas não haverá emprego para todas. Serão um contingente mantido pelo Estado. Talvez não seja tão ruim quanto parece. Quem sabe, com tempo ocioso não surjam mais artistas?Haja mais tempo para a criatividade. Por outro lado, num mundo daquele jeito haverá recursos para exercer a criatividade? Acho que a alma humana é fonte inesgotável . A arte não morre

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    1. As pessoas não serão mantidas pelo Estado, já que o Estado não produz nada. Não produz riquezas. Apenas arrecada impostos. As pessoas serão mantidas, portanto, pela sociedade que trabalha, produz e paga impostos. Quanto à arte, ela não é decorrência da ociosidade. Artistas não surgem porque estão sem nada para fazer, mas porque se entregam ao imperativo de exercer a humanidade em sua plenitude. Diferenciar-se dos animais com sua inteligência, capacidade de realização, espiritualidade...

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