Onde os Fracos Não Têm Vez: adaptação de um romance sombrio

Cena do filme Onde os Fracos Não Têm Vez
Onde os Fracos Não Têm Vez: direção de Ethan e Joel Coen

HÁ ALGO QUE VOCÊ JAMAIS ENXERGARÁ NESSE FILME

Há incontáveis megabytes de críticas, resenhas, especulações e até dossiês completos na internet sobre Onde os Fracos Não Têm Vez, dirigido em 2007 por Ethan e Joel Coen. O filme se tornou um verdadeiro objeto de culto entre alguns cinéfilos e confesso que relutei antes de escrever sobre ele. Não queria ser repetitivo, nem cair no lugar comum. Então, decidi comentar sobre aquilo que pode ter passado despercebido pela maioria dos espectadores.
        Mas antes, será preciso trazer à tona algumas obviedades. A primeira delas é que o material não foi originalmente escrito pelos irmãos Coen. Trata-se, sim, de uma adaptação do romance com o mesmo título, escrito por Cormac McCarthy. O autor, que morreu em 2023 aos 89 anos, é festejado como um dos maiores escritores americanos e assinou vários romances, peças de teatro e roteiros para o cinema – A Estrada, O Conselheiro do Crime e Espírito Selvagem são outros dos seus textos que viraram filmes. Seu estilo literário livre e áspero lida bem com o tema da violência e com as verdades inconvenientes que seus personagens preferem esconder.
        Ao adaptar Onde os Fracos Não Têm Vez, os irmãos Coen foram fiéis ao livro. Realizaram um trabalho de sintetização e editaram as partes mais literárias, para que ganhassem materialidade cinematográfica. No processo, algumas linhas de diálogo foram extraídas diretamente do romance. Os irmãos preservaram a atmosfera sombria e agregaram pitadas daquele humor ácido e refinado com o qual costumam temperar seus filmes. As soluções que levaram para o roteiro são brilhantes. Vejamos a sinopse:
        Ambientado no Texas, no início dos anos 1980, Onde os Fracos Não Têm Vez conta a história de Llewelyn Moss (Josh Brolin), que durante uma caçada pelo deserto tropeça com a cena de um crime: veículos abandonados e corpos esparramados ao redor. Deduz que se trata de um tiroteio entre traficantes de drogas. Deduz também que deve haver uma boa quantidade de dinheiro dando sopa. Bingo! Descobre uma maleta recheada de dólares e se apodera dela, mas comete o erro de voltar ao local do crime. É identificado e passa a ser perseguido pelo pior vilão que alguém poderia ter na sua cola: o psicopata Anton Chigurh (Javier Bardem), um assassino de aluguel frio e infalível, que foi contratado para recuperar a mala com dinheiro. O xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), experiente e calejado, segue o rastro dessa perseguição pontuada de tiros e massacres, para fazer a parte que lhe cabe.
        Quando assistimos a um filme como esse, nós cinéfilos nos prendemos a certos parâmetros: desempenho dos atores, qualidade da fotografia, pertinência da trilha sonora, realismo dos efeitos visuais... Porém, a soma das notas de cada quesito não fecha a conta! De nada adianta tirar nota dez em tudo se a história não for boa. Pior ainda, se ela não for bem contada! Por isso, ao mergulhar na trama, precisamos compreender como as histórias são contadas. Entender os recursos narrativos usados pelos cineastas para criar as obras que nos encantam – ou entender onde estão os erros naqueles filmes que detestamos.
        Meu ponto é que as boas histórias têm sobre nós um efeito magnético, mesmo que tratem de assuntos sensíveis. Às vezes nos pegamos assistindo a cenas violentas, que normalmente evitaríamos, sem conseguir desgrudar os olhos. Por que? Porque são encenadas com coerência e pertinência. Em Onde os Fracos Não Têm Vez essa violência é justamente o motor da trama. Os personagens se posicionam em lados opostos no tabuleiro: os que agem contra a lei e os que se dispõem a fazer com que ela seja cumprida.
        O filme se desenrola num ritmo tenso e sem floreios. Flerta com o gênero western – ainda que o material original seja um romance bem ao estilo pulp. O espectador logo intui o final inevitável: o embate mortal entre o protagonista destemido e o vilão implacável. Tal cena, todos nós sabemos que acontecerá. É por ela que aguardamos ansiosamente. Se ela não constar no script, será uma decepção!
        Pois não é que os irmãos Coen resolveram surpreender, justamente nesse momento crucial? Ao nos aproximarmos do final, essa cena tão esperada acontece fora do nosso olhar. Nada de violência gráfica, nada de requintes de crueldade, nada de adrenalina. No embate final entre o protagonista e o vilão, os diretores cuidaram para que chegássemos atrasados. Tudo o que nos resta é ver a cena do crime, depois que ele aconteceu. Passamos a examiná-la junto com xerife Tom Bell, empenhado na procura por pistas que permitam deduzir como os fatos se sucederam.
        Considero isso uma grande ousadia. Nas mãos de diretores e roteiristas mais sintonizados com o cinema comercial, essa sequência seria um prato cheio, para ser servido bem quente. No entanto, os irmãos Coen preferiram nos tirar da condição de meros espectadores passivos. Nos colocaram na pele do xerife e valorizaram as camadas emocionais desse personagem – e ressaltaram a inexistência delas, no caso do vilão psicopata.
        Onde os Fracos Não Têm Vez fez por merecer os quatro óscares que recebeu: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado e melhor ator coadjuvante, para Javier Bardem. O filme nos mostra que, ao construir uma sequência narrativa sólida e consistente, é possível omitir cenas que já estejam cristalizadas na mente do espectador. Mostrar o embate final entre Moss e Anton seria redundante. Não haveria surpresas. Assistindo a filmes brilhantes como esse, chego à conclusão de que, no cinema, quem não tem vez são os medíocres!


Capa do vídeo Onde Os Fracos Não Têm Vez

Resenha crítica do filme Onde os Fracos Não Têm Vez

Ano de produção: 2007
Direção: Ethan Coen e Joel Coen
Roteiro: Ethan Coen e Joel Coen
Elenco: Tommy Lee Jones, Javier Bardem, Josh Brolin, Woody Harrelson, Kelly Macdonald, Garret Dillahunt, Tess Harper, Barry Corbin, Beth Grant e Stephen Root

Leia também as crônicas sobre outros filmes dos irmãos Coen:

Comentários

  1. Excelente resenha. O que me lembrou de que, ironicamente, até o ar pode ser uma arma mortal.

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  2. Obrigado, Jane! Sua observação é ótima. Nas mãos de um vilão assustador, até mesmo um aparelho de ar comprimido causa medo!

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  3. 'Aprendi com Onde os Fracos Não Têm Vez que ao construir uma sequência narrativa sólida e consistente, é possível omitir cenas que já estejam cristalizadas na mente do espectador.'
    Isso é Gestalt!
    Também acho massa um aspecto do filme que é sempre explorado pelos irmãos Cohen. Sob a ótica deles parece que, apesar do que disse Einstein, Deus joga sim dados com o universo. Ou escolhe na moeda, como Anton Chigur. O mundo dos Cohen muitas vezes é puro caos sem Deus, o que acaba servindo de vantagem a sujeitos desprovidos de escrúpulos

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  4. 'Aprendi com Onde os Fracos Não Têm Vez que ao construir uma sequência narrativa sólida e consistente, é possível omitir cenas que já estejam cristalizadas na mente do espectador.'
    Isso é Gestalt!
    Também acho massa um aspecto do filme que é sempre explorado pelos irmãos Cohen. Sob a ótica deles parece que, apesar do que disse Einstein, Deus joga sim dados com o universo. Ou escolhe na moeda, como Anton Chigur. O mundo dos Cohen muitas vezes é puro caos sem Deus, o que acaba servindo de vantagem a sujeitos desprovidos de escrúpulos

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    1. Ah, caro amigo, essa utilização da Gestalt é cacoete de publicitário. Aprendemos a jogar com as percepções prévias do receptor para potencializar a mensagem. Quanto a jogar dados, concordo com você. O mundo caótico sem Deus é também um mundo sem estado - nesse filme, bem ao padrão dos westerns, onde o que temos é um arremedo da sua presença por meio da instituição policial.

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  5. Esse trabalho dos irmãos Cohen serve de aula pro Tarantino a construir um filme que ganhe Oscar, pois o considero imaturo ainda e que extrapola em suas narrativas. Tudo na medida, sem floreios num suspense crescente que nos é poupado dum final indicando que nada concreto.
    Um dos dez daquela década, sem dúvida.
    Na cena do ar comprimido quando estoura, (tinha colocado áudio de micro system) até meu gato na sala tomou um puta susto.... Kkk

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    1. Concordo, Alexander. Os irmãos Coen tiraram os floreios - inclusive a trilha sonora - e conseguiram valorizar cada compassa do história. Muito bom!!!!!

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  6. Realmente este filme prende nossa atenção. Tensionante!

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    1. Sim, sabemos que a corda vai arrebentar e acompanhamos com atenção para ver como e quando acontecerá.

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  7. Resenha perfeita para um filme perfeito! Esse não nos permite senão respirar ...

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    1. Ah, muito obrigado. Este é um filme envolvente!

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