E La Nave Va: a expressão de um cinema superlativo

Cena do filme E La Nave Va
E La Nave Va: filme dirigido por Federico Fellini

CINEMA SINGRANDO OS MARES DA ÓPERA

E La Nave Va é um filme... musical! Não apenas no sentido que empregamos para evocar o gênero consagrado em Hollywood, onde as canções ocupam a fala dos personagens e conduzem toda a narrativa. Esse é musical porque foi feito da mesma substância com a qual os músicos materializam suas criações. É ópera, é circo, é uma invenção surreal, é uma comédia, é abordagem histórica... É Federico Fellini. Foi realizado em 1983 e está entre os seus grandes filmes. Aqui o cineasta empenhou considerável esforço criativo e nos brindou com sua inconfundível sensibilidade artística. É cinema superlativo, costurado com metáforas, provocações metalinguísticas, rompantes de humor e momentos de um delicioso regozijo estético.
        E La Nave Va é sobre o vapor Glória N, que parte de algum porto italiano. O ano é 1914 e o objetivo é seguir num cruzeiro fúnebre até a ilha de Erimo, terra natal da falecida cantora Edmea Tetua, levando suas cinzas para jogá-las ao mar. A bordo viajam cantores, empresários, maestros, nobres, personalidades e políticos, todos admiradores da diva e ávidos por homenageá-la. Quem nos apresenta a essa diversificada fauna de personagens fellinianos é o Senhor Orlando, jornalista que aos poucos vai revelando indiscrições e detalhes inusitados sobre cada um. O navio parece uma réplica em escala reduzida do mundo da alta cultura e segue sua jornada sem novidades, até que refugiados sérvios, socorridos depois de um naufrágio, sobem a bordo. Eles escaparam das batalhas na Áustria, eclodidas com a morte do grão-duque Ferdinando, em Sarajevo, que deram início à Primeira Guerra Mundial. O inevitável acontece: nobres e plebeus se imiscuem, num animado colorido de erudição e folclore, até que a festa é interrompida por um navio austro-húngaro, que exige a entrega dos sérvios. Por uma sucessão de acontecimentos infelizes, assistimos ao naufrágio do Glória N – tal qual um Titanic fervilhando de nobres fleumáticos. Mas o Senhor Orlando escapa dividindo um bote salva-vidas com um... rinoceronte – que como ele mesmo afirma em sua frase final, dá um leite excelente!


       No filme E La Nave Va a estética operística é marcante e o cineasta se esbalda fazendo seu cinema visualmente deslumbrante, num complô criativo com o universo musical. Quando se fala de Federico Fellini, um nome que costuma ser lembrado é o de Nino Rota, parceiro musical em diversos filmes – mas o compositor já havia falecido em 1979. Para construir a trilha sonora desse filme, foi convocado Gianfranco Plenizio, outro compositor experiente no cinema. Ele fez uma elaborada costura de árias de Verdi e Rossini, acomodando nelas os versos especialmente compostos pelo poeta Andrea Zanzotto – que já havia colaborado com Fellini escrevendo versos para o filme Casanova.
        Os versos de Zanzotto destacam a importância da voz no contexto musical do filme e fazem referências metalinguísticas ao próprio “naufrágio” do cinema diante das transformações tecnológicas que vem sentindo década após década. Além de conduzir a narrativa do filme, as belas palavras do poeta trazem um conteúdo irônico ao roteiro e ajudam a caracterizar os personagens. Repaginados, Verdi e Rossini parecem ter criado especialmente para serem ouvidos num filme de Fellini. Mas não só eles! Debussy também dá as caras em vários trechos, com sua Clair de Lune, da Suite Bergamasque, além de Franz Schubert, com seu Momento Musical nº 3 em La menor executado na deslumbrante cena da orquestra de cristal, quando os músicos e maestros improvisam com taças e copos na cozinha do navio. Nós, espectadores, aplaudimos e vemos nosso próprio encantamento refletido no olhar perplexo do Senhor Orlando!
        Desde a sequência de abertura, simulando um documentário filmado em tons de sépia, até a parte final, onde Fellini escancara o cinema que dá suporte à sua obra e apresenta os bastidores do filme – com toda a parafernália construída nos estúdios da Cinecittà – o cineasta assume seu lado surreal. Oceanos de plástico e máquinas de fumaça remontam aos mundos da ópera e do circo, enquanto o jornalista Senhor Orlando, alter ego de Fellini, vocaliza sua crônica e flagra um mundo rico e imaginativo, sedimentado em séculos de cultura.
        Fellini conta que recortou de algum jornal uma notícia sobre uma cerimônia fúnebre, que culminava com o espalhamento das cinzas de alguém importante. Conversou com Tonino Guerra, seu fiel roteirista, e ambos inventaram uma história inteira ao redor dessa ideia. Levaram duas semanas para estruturar a narrativa e três anos para realizar o filme. E La Nave Va é isso: um espetáculo audiovisual que materializa os sonhos de um cineasta arrojado e disposto a fazer arte. Pensando bem, esses sonhos não são só dele. São nossos também!

Resenha crítica do filme E La Nave Va

Título em Portugal: O Navio
Ano de produção: 1983
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Tonino Guerra e Federico Fellini, em colaboração com Andrea Zanzotto
Elenco: Freddie Jones, Barbara Jefford, Victor Poletti, Peter Cellier, Elisa Mainardi, Norma West, Paolo Paoloni, Sarah-Jane Varley, Fiorenzo Serra, Pina Bausch, Pasquale Zito, Linda Polan, Philip Locke, Jonathan Cecil, Maurice Barrier, Fred Williams, Elizabeth Kaza, Colin Higgins, Vittorio Zarfati, Umberto Zuanelli, Claudio Ciocca, Antonio Vezza, Alessandro Partexano e Domenico Pertica

Leia também as crônicas sobre outros filmes dirigidos por Federico Fellini:

Comentários

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Siga a Crônica de Cinema