O Selvagem da Motocicleta: filme de arte assinado por Coppola
Rumble Fish: filme dirigido por Francis Ford Coppola
NA FRONTEIRA DO EXPERIMENTAL
Estava com 23 anos quando entrei numa sala de cinema para assistir ao filme O Selvagem da Motocicleta, dirigido em 1983 por Francis Ford Coppola. O mundo do entretenimento era radicalmente diferente daquele que conhecemos hoje. Mais lento, menos diversificado, mais inacessível... Minha filha, que nasceria sete anos depois, talvez tivesse dificuldades para conviver com tais limitações. Meu pai, por outro lado, morto sete anos antes, não teria dificuldade alguma, se ainda estivesse vivo naquela época. O mundo anda girava lentamente! Para ele, entrar numa sala de cinema ainda teria o mesmo caráter ritualista, de quem busca uma experiência sensorial única, que só pode ser vivida em uma sala escura, diante de uma tela imensa, compartilhada com uma plateia ávida por novidades.Como sempre, os filmes eram produtos intangíveis, desprovidos de materialidade. Não ficávamos com eles. Não tínhamos por eles o mesmo sentimento de posse. Hoje, compramos um DVD, adquirimos uma cópia no serviço de streaming, baixamos um arquivo para ver sempre que quiser... Eles se tornam nossos. Naquela época, eles eram propriedade dos seus realizadores e seguiam um modelo comercial estabelecido desde os primórdios do cinema. Pagávamos pela chance de espiá-los ao longo de uma sessão. Hoje, a sensação é a de que nem sequer precisamos pagar!
Fora das salas de cinema, também consumíamos filmes, mas eles estavam confinados às telinhas de TV, que exibiam imagens de baixa resolução, num formato quadrado – as laterais dos filmes eram simplesmente cortadas! Os mais abastados conectavam seus televisores a aparelhos de videocassete. Os demais, tinham que se contentar com as antenas, que captavam os sinais chuviscados das emissoras abertas – ainda não existiam as fechadas. Cinema de verdade, só nas salas de exibição. Lançamentos e novidades eram preciosidades, para degustar em ocasiões especiais.
Em 1983, O Selvagem da Motocicleta era isso mesmo: uma preciosidade. Hoje, depois de todas as reflexões que digitei nos parágrafos iniciais, prefiro defini-lo por meio da palavra generosidade! Refiro-me à generosidade de Francis Ford Coppola, um cineasta superlativo que não se importou em despender milhões de dólares para realizar um filme destinado ao fracasso nas bilheterias. Um filme na beira do experimental, difícil, diferente... Uma obra que jamais frequentaria os circuitos comerciais, a não ser pelas mãos de quem trazia no currículo sucessos estrondosos como O Poderoso Chefão e Apocalypse Now.
No Brasil, poucos se deram conta de que estavam diante de uma experiência sensorial única. Os que compraram ingressos instigados pelo título, esperando ver uma espécie de Velozes & Furiosos da época, saíram decepcionados. O Selvagem da Motocicleta não é um filme de ação. Está mais para um poema maldito, uma construção vanguardista elaborada a partir de uma mistura de nouvelle vague e expressionismo alemão. Filmado em preto-e-branco, recebeu uma trilha sonora inusitada e um acabamento gráfico refinado, com elementos em excesso e uma narrativa arrastada. Mas antes de falar sobre isso, vejamos a sinopse:
O Selvagem da Motocicleta conta a história de Rusty James (Matt Dillon), um jovem delinquente que lidera uma gangue em Tulsa, Oklahoma. Longe de ser inteligente, é notório pela bravura e impetuosidade. Em luta com gangues rivais, planeja se tornar tão temido e respeitado quanto seu irmão mais velho, o lendário Motorcycle Boy (Mickey Rourke), este sim, um autêntico líder, que conseguia unir as gangues locais, mas está desaparecido há dois meses. Eis que Motorcycle Boy reaparece, mas está disposto a abandonar de vez a delinquência. Rusty James tentará convencê-lo a retomar a vida nas gangues, enquanto convivem com o pai alcoólatra (Dennis Hopper) e enfrentam a realidade da violência urbana. Também precisará lidar com o temor de que o irmão talvez seja portador da mesma insanidade que levou a mãe deles.
Este filme é uma adaptação do romance intitulado Rumble Fish, escrito por Susan Eloise Hinton. Antes dele, a autora americana escreveu outro romance de sucesso: Outsiders, que também foi adaptado para as telas por Francis Ford Coppola naquele mesmo ano de 1983, num filme bem mais palatável para o circuito comercial. Trata-se de Vidas Sem Rumo, que também narra o cotidiano violento dos jovens na cidade de Tulsa. E isso explica a ousadia experimental do diretor: ele aproveitou as mesmas locações, os mesmos colaboradores e o mesmo esforço de produção para baratear os custos e viabilizar a realização de O Selvagem da Motocicleta.
Coppola quis realizar um filme de arte voltado para o público jovem, onde pudesse abusar da abordagem poética, experimentar novos ângulos e planos, impor uma iluminação mais dramática e provocar os sentidos com uma trilha sonora ritmada. E conseguiu! As sequências em que vemos o céu carregado de nuvens aceleradas e as sombras da paisagem urbana se movendo em velocidade, subvertem a noção do tempo e trazem um sentido de urgência sufocante. A fotografia monocromática de Stephen Burum cria uma atmosfera onírica, que embaralha a noção de realidade. A trilha sonora assinada por Stewart Copeland, então baterista do grupo The Police, é incômoda e provocativa. Conduz o espectador num crescendo para a conclusão do filme, ainda que narrativa siga lenta e... arrastada.
O Selvagem da Motocicleta é um filme triste, pautado pelas atuações marcantes de Mickey Rourke e Matt Dillon. Seu forte apelo audiovisual é resultado de um apuro técnico notável e da utilização de recursos tecnológicos inovadores, o que justifica o orçamento de dez milhões de dólares que consumiu – uma quantia vultosa na época e que jamais se recuperou nas bilheterias.
Tive o prazer de assistir a esse filme numa sala de cinema, onde vivi uma experiência sensorial única, diante de uma tela imensa, compartilhada com uma plateia diminuta, mas ávida por novidades. Respirei uma atmosfera de modernidade e saí com a sensação de ter fruído uma obra de arte preciosa. Era incrível que um filme assim estivesse disponível no circuito comercial. Alguém estava perdendo dinheiro, mas decerto não ligava. Estava sendo generoso com a sétima arte.
Resenha crítica do filme O Selvagem da Motocicleta
Título Original: Rumble FishTítulo em Portugal: Juventude Inquieta
Ano de produção: 1983
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola e Susan E. Hinton
Elenco: Matt Dillon, Mickey Rourke, Diane Lane, Dennis Hopper, Diana Scarwid, Vincent Spano, Nicolas Cage, Chris Penn, Larry Fishburne, William Smith, Tracey Walter, Glenn Withrow, Tom Waits, Michael Higgins, Sofia Coppola e S. E. Hinton
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