Sonhos: Kurosawa apresenta seu filme mais cativante

Cena do filme Sonhos
Sonhos: filme de Akira Kurosawa

UMA CONVERSA INDIVIDUAL, COM CADA ESPECTADOR

Filmes são como espelhos. Refletem a vida real, ainda que às vezes as imagens cheguem distorcidas, manipuladas e ordenadas segundo alguma lógica peculiar. Filmes nos falam por meio de metáforas e nos alcançam com símbolos e arquétipos. São projeções que nos confrontam com nossas emoções, nossos desejos, nossas frustrações... Filmes dialogam com nosso inconsciente. Também poderíamos chamá-los de... sonhos!
        Desde os seus primórdios, a função onírica do cinema ficou clara. A linguagem que estabeleceu, guarda similaridade com a linguagem dos sonhos – trazida como herança do teatro, do circo, dos espetáculos operísticos... Os cineastas sempre compreenderam tal relação e se esbaldaram com a possibilidade de trazer para as telas os misteriosos eventos que nos visitam enquanto estamos dormindo. Mas foi Akira Kurosawa quem realizou um filme intitulado Sonhos! Lançado em 1990, é uma das suas obras mais cativantes e envolventes, porque se assenta sobre uma narrativa visual impressionante.
        Kurosawa extraiu memórias do seu diário de sonhos e criou oito minifilmes, organizados na tela para emular uma trajetória de vida. O primeiro abre com o protagonista – batizado apenas de “eu” – ainda na infância. O último nos coloca diante de um funeral, encerrando o filme num tom otimista, esperançoso e espiritual. Confesso que quando fui assistir ao filme Sonhos pela primeira vez, no cinema, entrei na sala de exibição sem empolgação. Acompanhar os sonhos de uma outra pessoa é quase sempre uma experiência enfadonha – imagino que mesmo para os psicoterapeutas, que precisam sustentar uma atitude profissional diante do paciente. Felizmente, o diretor não exigiu tal postura da plateia: apenas nos convida para contemplar uma experiência estética, sem precisarmos nos preocupar com a interpretação de símbolos ou a busca de significados mais profundos.
        O filme Sonhos nos conta oito histórias: Um raio de sol através da chuva, O jardim dos pessegueiros, A tempestade, O túnel, Corvos, Monte Fuji em chamas, O demônio que chora e O vilarejo dos moinhos. Falar sobre elas acaba sendo um exercício inócuo. O melhor mesmo é assistir ao filme Sonhos! Pouquíssimas produções conseguem a proeza de conversar individualmente com cada espectador. Não interessa o consenso, não há com o que concordar nem discordar, do que mais gostar ou desgostar. Quando o analisamos com ferramentas acadêmicas, ou escolhemos observá-lo sob o ponto de vista psicológico, o filme simplesmente se desintegra. Perde o sentido. É como nas bizarras leis da física quântica, onde o ato de observar um evento envolvendo partículas subatômicas termina por interferir na própria natureza dos objetos observados.
        Kurosawa, mais conhecido por seus filmes de samurais e dramas humanos, era um cineasta paparicado pela crítica e pela mídia especializada, que tratava de polir o verniz intelectual que revestia sua obra – ainda que nada disso tenha contribuído para aumentar os resultados nas bilheterias. Por esse motivo os estúdios não se dispuseram a financiar o projeto de seu filme mais abstrato e intimista. Foi graças à intervenção de Steven Spielberg, que conseguiu financiamento em Hollywood e do apoio de Francis Ford Coppola e Martin Scorsese – todos fãs do cineasta japonês – que o projeto se viabilizou. O filme Sonhos, então, se tornou de fato um protejo muito pessoal para Kurosawa, não apenas pela temática que apresentava, mas também pelo envolvimento dos filhos, parentes e amigos dos cineastas, que assumiram postos-chave por trás das câmeras, administrando a produção.
        Como ocidental, há um abismo cultural que me separa de Akira Kurosawa – não sei falar japonês, nem ler os caracteres silábicos do alfabeto hiragana. Conheço nada mais do que uma pequena ponta da montanha da produção artística, que fica submersa no mar da milenar cultura oriental. Mas a ponte que o diretor construiu com sua arte é tão sólida e convidativa que ficou fácil visitá-lo. Sonhos é um filme essencial, para ser apreciado de tempos em tempos até virar um daqueles sonhos recorrentes que nos visitam seguidas noites. Ouso dizer que é para criar filmes assim que o cinema foi feito!

Resenha crítica do filme Sonhos

Título original: Yume
Ano de produção: 1990
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa
Elenco: Akira Terao, Mitsuko Baisho, Mieko Suzuki, Toshie Negishi, Mieko Harada, Mitsunori Isaki, Toshihiko Nakano, Yoshitaka Zushi, Hisashi Igawa, Chosuke Ikariya, Chishu Ryu, Martin Scorsese, Masayuki Yui, Shu Nakajima e Sakae Kimura

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Comentários

  1. Obrigada por me fazer lembrar de um de meus filmes preferidos de todos os tempos!!

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    1. Legal, Jane!! Cinema é memória viva. Temos que continuar lembrando sempre dos grandes filmes!!!!!

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  2. Fabio, tive o prazer de ver esse filme no cinema e confesso que ao sair da sala de cinema demorei a me situar onde estava e quem eu era. Maravilhado, Estarrecido, Constrangido e Sufocado, foram essas as sensações que consigo me lembrar agora. Não foi apenas as historias contadas no filme que impressionaram, mas principalmente, o visual cinematrografico, as cores, as sombras e principalmete a magia do cinema exposta nas imagens revelando a arte como um retrato em movimento no seu mais puro espetaculo!!!. Kurosawa e seu filme "Sonhos" deixou marcas em mim e acredito que em muitos outros que se sentiram maravlihados com essa pelíluca!!!

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    1. Entendo perfeitamente seu encantamento. Não vi esse filme no cinema e sei que isso prejudicou um pouco. Mas acho que o poder desse filme está justamente nas imagens que ele consegue projetar na mente do espectador, que ficam gigantescas. São eternas... Viva o cinema!!!!!!

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  3. Filme lindissimo! Sem igual! Parabens! Ótima crônica!

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    1. Sim, é um filme único! Obrigado pelo feedback!!!!!

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  4. Gratidão, aprendi um pouquinho mais, não vi o filme vou atrás e olhar pelos escritos que li é meu gosto, Luís Carlos de Mendonça

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  5. Esse filme me encantou principalmente pela plasticidade e pelas cores . Parabéns pela crônica, como sempre brilhante.😚

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