Ensaio Sobre a Cegueira: a metáfora da luz branca que está cegando a humanidade
Ensaio Sobre a Cegueira: filme dirigido por Fernando Meirelles
Roteiro: Don McKellar
Elenco: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover, Gael García Bernal e Alice Braga
POUCOS FILMES SOBRE O APOCALIPSE MEXEM TANTO COM A NOSSA VISÃO DE MUNDO
As palavras de José Saramago impressas em seu livro Ensaio Sobre a Cegueira, de 1995, possuem dimensão gráfica. Podemos sentir o cheiro da tinta apegada ao papel. Podemos perceber o ar se deslocando sobre o nosso rosto, na medida em que desfolhamos as páginas com o polegar. Até um cego, auxiliado por um leitor, pode apreciar o texto e fruir a obra desse aclamado autor, laureado com o Nobel de Literatura em 1998. No filme Ensaio Sobre a Cegueira, realizado em 2008 por Fernando Meirelles, isso fica mais complicado. Transpor
literatura para o cinema é uma arte complexa. O texto do livro nos chega
diferente ao ser formatado para a linguagem visual, verbal e musical do filme. Há
nuances que os realizadores precisam compreender para solucionar os componentes
narrativos, estabelecer a caracterização dos personagens, construir uma
ambientação adequada e projetar uma atmosfera em sintonia com a construção literária
do autor. Nesse filme, tais desafios foram vencidos com talento e competência
pelos realizadores.
Antes de seguir
com o texto é preciso que se diga: Ensaio
Sobre a Cegueira não é um filme fácil. Não oferece aventura, mistério,
romance nem curiosidades da ficção científica – a quem procura por isso, sugiro
assistir a outro filme, do tipo Eu Sou a Lenda. Nesse aqui, só o que temos é
uma agonia permanente, uma desesperança torturante e uma provocação para
que encaremos a nossa própria cegueira, como indivíduos e como sociedade.
Na cidade
hipotética criada por Saramago, uma epidemia de cegueira branca se espalha por
toda a população. Não é aquela cegueira escura, que decorre da ausência de luz,
mas uma branca, causada pelo excesso de informação visual, que resulta na soma de todas
as cores ofuscando a visão. A vida entra em colapso, as estruturas sociais
desmoronam e os regramentos morais se deterioram. Acompanhamos a progressão do
caos através de alguns personagens sem nome, que primeiro buscam por comida e depois
apenas tentam... não morrer.
Fernando
Meirelles recebeu dos produtores o roteiro já pronto, adaptado por Don McKellar.
A partir daí seu esforço foi o de transpor para o cinema as metáforas ásperas dos
escritos de Saramago. Escalou os atores Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny
Glover, Gael García Bernal e Alice Braga – entre outros – iniciando com eles e toda
a equipe técnica um intenso trabalho de imersão na obra. O resultado agradou ao
próprio Saramago, que teceu elogios emocionados na estreia do filme.
No filme Ensaio Sobre a Cegueira, a fotografia esbranquiçada, lidando ora com o excesso de luz e ora com a falta
dela, aliada aos planos imprecisos e eventualmente desfocados – como se tivessem
sido captados por um cinegrafista... cego – foram artifícios bem utilizados pelo diretor.
A música incidental, assinada pelo grupo Uakiti, liderado por Marco Antônio
Guimarães, cria um universo sonoro instigante e inusitado, causando um certo estranhamento
no espectador. No final, temos um filme sobre cegos voltado para os... não
cegos.
A essa
altura, falar assim da cegueira é correr o risco de escorregar na metáfora e
levar um tombo vistoso, afinal, os significados e subtextos que nos
bombardeiam ao longo do filme lembram que já não enxergamos a verdade diante dos
nossos olhos: a vida que levamos não se sustentará da mesma forma por muito
tempo. Precisa ser repensada. Foi essa reflexão, feita enquanto Ludy e eu seguimos nossos dias
de confinamento por causa da epidemia do Covid19, que me levou a revisitar
o filme Ensaio Sobre a Cegueira.
Há filmes mais
amenos, mas preferi
falar nesse em especial, para poder tocar num assunto que me incomoda há tempos:
a forma como a humanidade está caminhando em marcha à ré. Não estou falando sobre
moralismos ou crenças ideológicas, mas apenas examinando a forma como nos comunicamos.
O surgimento da internet está nos isolando em feudos culturais.
A partir da
segunda metade do século XX, iniciamos uma escalada tecnológica que transformou
o mundo numa aldeia global – para resgatar um conceito bastante difundido nos anos 1960. Era como se todos os seres humanos do planeta estivessem sintonizados no
mesmo canal de TV. Um ator de cinema ou um músico pop star era capaz de falar
com todos simultaneamente. A comunicação de massa parecia gerar uma cultura
unificada – pelo menos no ocidente – à qual todos tinham acesso.
Então veio
a internet e destruiu essa noção. Incendiou nossa aldeia e nos dividiu em
tribos. Hoje, unanimidades como Michael Jackson e os Beatles são inimagináveis.
Produtos culturais como filmes e vídeo games são criados para nichos cada vez
menores, numa escalada crescente de segmentação. As redes sociais, que simulam
alargar nossos contatos com o mundo, só conseguem nos aglutinar em grupos
homogêneos de pensadores com a mesma mentalidade.
Então, caro
leitor, veio essa pandemia e nos isolou mais ainda, dentro de casa. Agora, olho
pela janela e me imagino vivendo numa cidade estado da idade média, sem saber
que novidades estão sendo gestadas nas cidades vizinhas. O problema é que não
fizemos uma transição da cultura de massa para a cultura de nicho. Continuamos
acreditando que as nossas verdades valem para todos, que os filmes aos quais
assistimos são os melhores, que as canções que ouvimos dizem tudo, que as
notícias que recebemos são as mesmas às quais todos dão ouvidos.
Há muita
luz entrando em nossos olhos e isso está nos cegando.
Resenha crítica do filme Ensaio Sobre a Cegueira
Data de produção: 2008
Direção: Fernando MeirellesRoteiro: Don McKellar
Elenco: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover, Gael García Bernal e Alice Braga
Caramba... você encontrou o filme que é a metáfora dessa pandemia...
ResponderExcluirÉ... Saramago encontrou isso em 1995 e o Meirelles transformou em filme!!!!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGostei muito da crônica. Penso que esse filme exemplifica de modo geral tudo que estamos vivendo.
ResponderExcluirObrigado Priscila! É um momento estressante, que está mexendo com as nossas ansiedades. O texto de Saramago é primoroso e denso. Há muito o que refletir sobre o tema. Nessa pandemia, estamos com tempo de sobra para isso!
ExcluirExcelente crônica e realmente estamos vivendo um momento triste. Concordo com você quando conclui que estamos retrocedendo, e não é só na comunicação, isso está acontecendo principalmente nos valores sociais.
ResponderExcluirMuito obrigado! Nosso mundo muda rápido e isso exige mais de nós.
ExcluirEsse filme é um filme que você nunca vai esquecer a brutalidade a até que. O ser humano pode chegar Quando acontece algo e para eles é uma tragédia Mas enfim há milhares de pessoas cegas e nem por isso Ficaram tão desesperadas tão loucas pelo fato de perder o sentido da visão na verdade dentro do filme há várias metáforas o médico que era oftalmologista quando as mulheres vão trocar seus copos por comida tem uma prostituta junto E o Danny Glover que já era cego e tava gostando da situação Porque as pessoas não olhavam para ele mais como diferente e cada pessoa pode sentir a essência verdadeira de Cada um sem olhar a aparência
ResponderExcluirUsamos ver e enxergar para substituir o verbo entender. Parece que só o canal visual nos dá acesso ao mundo, mas os outros sentidos também carregam e descarregam a nossa humanidade. E como você disse, ela é brutal!!!!
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