Fahrenheit 451: autoritarismo buscando o controle da informação

Cena do filme Fahrenheit 451
Fharenheit 451: filme dirigido por François Truffaut

UMA OBRA DISTÓPICA NA FILMOGRAFIA DE TRUFFAUT

Degustar vinhos é um grande prazer. Agitar a taça para revolver o conteúdo e assim obrigá-lo a desprender um pouco da sua personalidade – que tentaremos depois reconhecer pelo nariz – é um gesto simples. Sorver um gole generoso e jogar o líquido pela boca, de um lado para o outro, para tentar identificar os tantos de acidez, de frescor, de taninos, de complexidades... Outro exercício simples e fácil. Entregar-se ao devaneio de encontrar as conexões emocionais sugeridas pelo vinho, especialmente quando estamos em boa companhia, é talvez o caminho mais simples e natural em qualquer degustação.
        Entretanto, toda essa simplicidade, caro cinéfilo, é apenas aparente! Você certamente já se deu conta de quantos milhares e milhares de anos de evolução e conhecimento foram necessários para que pudéssemos chegar a um tal grau de sofisticação: criar vias de comunicação entre a realidade física e o nosso mundo interno, entre a natureza que nos contém em nossa condição humana e a espiritualidade que nos liberta. Se falava de vinho, agora ficou claro que fui além: falo de arte, de cultura e de... humanidades!
        Dos audaciosos gregos – e antes deles! – até os dias de hoje, quantas conquistas se sobrepuseram umas às outras! A civilização ocidental é uma síntese dessa trajetória incrível. Pode ser examinada em detalhes por meio dos nossos livros. Antes de Gutemberg, eles eram copiados a mão. Hoje, existem em suportes digitais, num rompimento com a supremacia do papel.
        Imagino que você, caro cinéfilo, também esteja preocupado com os riscos que a todo momento assombram os valores e as conquistas da nossa civilização ocidental. De tempos em tempos surgem os tais revolucionários, ávidos por fazer tábula rasa de tudo o que sabemos. Querem fazer como os romanos, que derretiam a cera nas tábuas que usavam para escrever e depois as raspavam, para ter novas tábuas em branco. Querem recomeçar do zero, de um modo que atenda melhor aos seus interesses.
        Os interessados em tomar o poder e impor projetos totalitários, precisam reescrever a história. Para isso, tentam acabar com os livros. Os nazistas e os fascistas fizeram isso literalmente. Os ditadores atuais se valem da censura, inclusive aos meios digitais. Ray Bradbury levou o conceito ao extremo, em seu romance Fahrenheit 451, publicado em 1953. O enredo é perturbador! Num mundo futurista, a realidade é invertida: bombeiros incendiários queimavam livros ao invés de combater o fogo, enquanto as pessoas perdem tempo hipnotizadas diante da TV. Lembro de ter pensado, ainda na adolescência, quando li o romance:
        – Isso é bobagem! O livro jamais vai desaparecer. Como poderia ser substituído pela televisão, um meio tão... desprovido de profundidade!
        Mas a tela de TV à qual Ray Bradbury se refere, e que eu tinha como referência, guardava poucas semelhanças com as telas de computadores, tablets e celulares que usamos atualmente. O autor imaginou aquela televisão sem interatividade, facilmente controlada pelo estado e ideal para doutrinar e imbecilizar. Aquela voltada para as massas, que tinha apenas a intenção de homogeneizar pensamentos.
        Em 1966, a adaptação realizada por Françoius Truffaut transformou essa ideia ameaçadora numa realidade plausível. Em Fahrenheit 451 seus bombeiros queimavam livros ao som de Bernard Herrmann, o mestre das trilhas sonoras. O filme nos conta a história de Montag (Oskar Werner), um bombeiro responsável e dedicado ao seu trabalho de atender denúncias e dar fim nos livros que encontra. Ele foi instruído para acreditar que esses objetos perigosos, dentro de suas lindas capas coloridas, escondem ideias perigosas, que trazem infelicidade e prejudicam a produtividade dos trabalhadores. Mas tudo muda para ele quando conhece Clarisse (Julie Christie), uma estranha que o incentiva a examinar o conteúdo dos livros que vai queimar. Diante da mudança de comportamento, a mulher de Montag, que vive grudada na TV e anestesiada por pílulas, o denuncia e ele precisa fugir. Escapa para o mundo clandestino dos leitores.
        Em Fahrenheit 451, a redenção vem por meio dos personagens que se dedicam a ler e decorar os livros. Tornam-se pessoas-livro, que tomam para si a tarefa de preservar o conteúdo, para reeditá-lo tão logo seja possível. Ainda que tragam alguma esperança de que as conquistas da civilização ocidental possam ser heroicamente preservadas, ver os pobres infelizes a recitar livros inteiros é de uma tristeza profunda, que corta o coração!
        Fahrenheit 451 é ficção científica de alta qualidade, mas não espere um filme de ação mirabolante – aliás, tentaram essa tolice num remake hollywoodiano de 2018, mas esqueceram de vasculhar o que se passa no universo interno dos personagens, que mais pareciam livros repletos de páginas em branco!
        Ainda prefiro essa elegante – e um tanto pedante – adaptação de François Truffaut, um dos principais nomes da Nouvelle Vague. Aqui nos apresentou seu primeiro e único filme falado em inglês. É verdade que o diretor não está interessado em ficção científica e abre pouco espaço no seu filme para a tecnologia futurista. Ele também fez alterações em relação ao romance original, especialmente no personagem de Clarisse, de modo a ter um final mais esperançoso. Aliás, a atriz Julie Christie interpreta tanto Clarisse como a mulher de Montag, seu exato oposto. Isso cria uma curiosa dicotomia entre a alienação e o engajamento.
        A ficção científica é assim mesmo: cria outra realidade, minuciosa e intrincada, mas como nos mostra Truffaut, ela não é território exclusivo dos filmes de ação. Há espaço nela para os dramas intimistas.

Resenha crítica do filme Fahrenheit 451

Data de produção: 1966
Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, David Rudkin e Helen Scott
Elenco: 
Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack, Anton Diffring, Jeremy Spenser, Bee Duffell, Alex Scott e Gillian Lewis

Comentários

  1. Um dos filmes mais impactantes da minha vida de adolescente,quase adulta!

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    1. Lembro de ter assistido a esse filme na TV. Foi perturbador. Era adolescente e na época havia esse conceito de que a mídia eletrônica emburrecedora estava tirando espaço da literatura. Que no futuro não teríamos livros. Que a linguagem escrita cairia em desuso!

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  2. Clint Anderson Eliot06/03/2025, 11:32

    Eu achei o livro muito superior ao filme. Li vários de Ray Bradbury e considero esse o seu melhor. Essa adaptação para filme me pareceu mediana e com alguns méritos. Há alguns detalhes que me pareceram inadequados. Numa cena um personagem usa um telefone de DISCAR de um tipo hoje totalmente fora de uso. Em outra cena durante a incineração de livros a câmera mostra em close a capa de um livro de bolso humorístico publicado pela revista MAD -sendo queimado ( cena que ocorre aos 1h 35m 52s). Eu como sou fã da extinta revista MAD e coleciono seus livros ate hoje o reconheci de imediato. Eu o tenho em minha coleção. Chama-se "Mad Grease Stuff". Como você mesmo disse -o filme alterou muitas coisas do livro. O "cão robô" programado para matar fugitivos da lei-descrito no livro- não é mostrado no filme. Ray Bradbury nesse livro da muita ênfase ao lado religioso tanto que alguns personagens "decoradores de livros" combinam em dividir entre eles a tarefa de decorar a bíblia ficando cada um com a tarefa de memorizar um dos livros da mesma e portanto adotar como próprio nome do livro bíblico que memorizou- de gênesis até ao apocalipse. Guy Montague- o protagonista se junta a a eles e opta por decorar o livro bíblico ECLESIASTES e por isso passa a ser chamado por esse nome pelos demais colaboradores. NADA DISSO é sequer mencionado no filme. Acho que Truffault era ateu ou agnóstico e por isso preferiu descartar qualquer vestígio de cultura judaico-cristã presentes no livro em sua adaptação. No filme um dos "decoradores" afirma ter memorizado um livro famoso de Bradbury (se não me engano "Crônicas Marcianas"). Bradbury NÃO fez essa homenagem a si mesmo no seu trabalho. Essa "gracinha" foi feita por Truffaut para homenagear o autor. É um filme com alguns méritos -mas eu penso que é um tanto super valorizado por muitos que não analisaram com a devida atenção e acham que se foi feito por Truffaut só pode ser uma obra prima. Obrigado !

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    1. Está adaptando de Truffaut descartou as passagens tecnológicas, por questões orçamentárias e também por inclinações pessoais do diretor. Para a maioria dos seus fãs, este ė um filme menor entre todos os que realizou.

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    2. Corrigindo: esta adaptação de Truffaut...

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