A Festa de Babette: quando o alimento ganha significado para o espírito
A Festa de Babette: filme dirigido por Gabriel Axel
UM FILME MADURO, REALIZADO COM GRANDE COMPETÊNCIA ARTÍSTICA
Ah, como é bom ser humano! Poder aproveitar por inteiro os nacos de realidade que nos chegam por meio dos cinco sentidos. Ter essa capacidade de atribuir significados a tudo o que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos e degustamos. Compartilhar nossa humanidade e cultivar relacionamentos por meio das experiências que temos em comum com todos os demais humanos. É daí que decorre a arte – na verdade, todas as sete: arquitetura, escultura, pintura, música, dança, literatura e cinema. Mas espere aí! Quem disse que a arte precisa estar submissa à ditadura da visão e da audição? Há muito material artístico para ser fruído por meio de outros sentidos, como por exemplo, o paladar. É disso que nos fala o filme A Festa de Babette, escrito e dirigido em 1987 pelo dinamarquês Gabriel Axel.O filme ficou consagrado como uma ode à gastronomia e foi a primeira produção dinamarquesa a ganhar o Óscar de melhor filme estrangeiro. Ainda hoje A Festa de Babette encanta cinéfilos por sua abordagem poética. Inclusive já li especulações sobre um possível remake que seria dirigido por Alexander Payne, mas pelo que sei o projeto ainda não vingou. De qualquer forma, o original tem conteúdo suficiente para continuar encantando por muito tempo ainda.
A Festa de Babette é a adaptação de um conto publicado pela escritora dinamarquesa Karen Blixen, mais conhecida pelo seu pseudônimo Isak Dinesen. Festejada em toda a Escandinávia, a autora se popularizou internacionalmente em 1985 quando teve seu livro autobiográfico Entre Dois Amores adaptado para as telas pelo cineasta Sidney Pollack, numa produção premiadíssima, estrelada por Meryl Streep e Robert Redford. Dois anos depois, Gabriel Axel traz Karen Blixen novamente para as telas, dando um tratamento reverente e respeitoso à sua obra e permanecendo fiel ao seu espírito literário. Mas antes de entrar em detalhes, vamos ver uma sinopse.
A história se passa no final do século XIX, numa pequena, remota e gélida vila de pescadores escandinavos, onde um pastor viúvo criou uma sólida comunidade religiosa, dedicada ao canto de hinos e obras de caridade. Depois da sua morte, suas filhas Martine (Birgitte Federspiel) e Philippa (Bodil Kjer) se esforçam em dar continuidade ao seu legado. As irmãs solteironas empregam como cozinheira a francesa Babette Harsant (Stéphane Audran), que misteriosamente aparece no vilarejo, fugindo das perseguições políticas que sofreu em Paris. A vida austera e regida pela sisudez se impõe num cotidiano enfadonho. Então, a narrativa recua décadas para mostrar como as irmãs eram belas e cortejadas por pretendentes, entre eles o jovem oficial de cavalaria Lorens Löwenhielm (Gudmar Wivesson) e o famoso barítono Achille Papin (Jean Philippe Lafont), consagrado na Ópera de Paris. Martine e Philippa – agora interpretadas por Vibeke Hastrup e Hanne Stensgaard – têm a oportunidade de expandir suas vidas, mas escolhem permanecer no vilarejo e entregar-se ao celibato e à religiosidade. Como constatamos então, elas envelhecem e continuam sua rotina, dedicadas às obras de caridade e aos encontros religiosos com o pequeno grupo de seguidores, também idosos.
Ocorre que o destino traz a sorte grande para a cozinheira Babette. Um bilhete de loteria premiado coloca em suas mãos 10 mil francos, uma quantia vultosa, que poderia bancar sua volta a Paris. Mas ao invés disso, o que faz Babette? Gasta tudo para oferecer aos 12 integrantes do grupo de religiosos um jantar luxuoso e requintado. No cardápio, os pratos mais sofisticados que se possa imaginar, com as iguarias e as bebidas mais caras que ela manda trazer direto da França. Tudo é preparado por ela com arte e perícia, e quando posto à mesa, transforma a vida dos velhos religiosos, que jamais se permitiram tamanho banquete. O único entre os convidados capaz de compreender a dimensão gastronômica da festa é o agora idoso oficial de cavalaria Lorens Löwenhielm (Jarl Kulle) que também poderá revelar o passado da misteriosa cozinheira.
A produção esmerada de A Festa de Babette ressalta a arte da gastronomia e nos leva a acompanhar, intrigados, a transformação dos personagens. Antes eram totalmente entregues à austeridade, crentes de que aquilo que nos chega pelo paladar é um pecado e está restrito ao mundano e ao carnal. Agora, percebem que degustar aromas e sabores, suas combinações e contrates, é uma forma elevada de cultivar a espiritualidade, os relacionamentos e – por que não – o regozijo estético. Quem criou os pratos apresentados no filme foi o chef do restaurante La Cocotte de Copenhague, Jan Cocotte-Pedersen, que publicou as receitas e acabou transformando algumas delas em clássicos da culinária internacional.
Aliás, é preciso ressaltar que A Festa de Babette vai além do elogio à gastronomia. Percebemos grande apuro artístico quando reparamos, por exemplo, nas pinturas do mestre holandês Vermeer ornando as paredes da sala onde acontece o elegante jantar. Ou quando nos arrepiamos com a excelente trilha sonora composta por Per Nørgård ou as várias e excelentes performances musicais apresentadas no filme.
Um elemento que me incomodou foi a narração em off, que num primeiro momento me pareceu desnecessária e em dissonância com a linguagem do cinema. Mas depois de pesquisar, compreendi que o trato com os idiomas escandinavos, suas pronúncias e peculiaridades, tornara-se indissociável do contexto literário da obra. Além disso, o diretor Gabriel Axel, sensível e maduro – contava 69 anos quando realizou A Festa de Babete – não tiraria do público a oportunidade de “ouvir a voz” da autora Isak Dinesen.
Aliás, é preciso ressaltar que A Festa de Babette vai além do elogio à gastronomia. Percebemos grande apuro artístico quando reparamos, por exemplo, nas pinturas do mestre holandês Vermeer ornando as paredes da sala onde acontece o elegante jantar. Ou quando nos arrepiamos com a excelente trilha sonora composta por Per Nørgård ou as várias e excelentes performances musicais apresentadas no filme.
Um elemento que me incomodou foi a narração em off, que num primeiro momento me pareceu desnecessária e em dissonância com a linguagem do cinema. Mas depois de pesquisar, compreendi que o trato com os idiomas escandinavos, suas pronúncias e peculiaridades, tornara-se indissociável do contexto literário da obra. Além disso, o diretor Gabriel Axel, sensível e maduro – contava 69 anos quando realizou A Festa de Babete – não tiraria do público a oportunidade de “ouvir a voz” da autora Isak Dinesen.
Resenha crítica do filme A Festa de Babette
Ano de produção: 1987Direção: Gabriel Axel
Roteiro: Gabriel Axel
Elenco: Stéphane Audran, Bodil Kjer, Hanne Stensgaard, Birgitte Federspiel, Vibeke Hastrup, Jean Philippe Lafont, Jarl Kulle, Gudmar Wivesson, Bibi Andersson, Bendt Rothe, Lisbeth Movin, Preben Lerdorff Rye, Cay Kristiansen, Axel Strøbye, Erik Petersen, Ebbe Rode, Ebba With, Pouel Kern, Else Petersen, Finn Nielsen, Holger Perfort, Asta Esper Andersen, Therese Højgaard Christensen, Lars Lohmann, Tine Miehe-Renard, Thomas Antoni, Gert Bastian, Viggo Bentzon, Tina Kiberg. Kim Sjøgren, Ghita Nørby
Nossa!!! Quantas informações que eu não tinha e que vc nos presenteou com sua crônica maravilhosa. Amo esse filme e já assisti 4 vezes e com certeza, assistirei novamente. Obrigada por seu trabalho primoroso.
ResponderExcluirSou muito grato por seu feedback. Isso me deixa animado para continuar escrevendo!
ExcluirVi e vejo sempre este filme, vccomo sempre magistral em suas Crônicas de Cinema ela nos ajuda e verei outra vez depois de sua explanação Parabéns
ResponderExcluirObrigado! Também costumo revisitar esse filme sempre quer posso.
ExcluirExcelentes suas Crônicas, depois de ler nos impulsiona a rever o filme sempre esclarecedor. Aguardando seu Cadernos de Cinema. ABS
ResponderExcluirAh, obrigado! Quanto aos cadernos... Ainda preciso dedicar um tempo a eles, mas estão nos meus planos! Valeu pelo interesse!
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