Rota Selvagem: no final, é um filme sobre o abandono e a solidão


Cena do filme Rota Selvagem
Rota Selvagem: filme dirigido por Andrew Haigh

CINEMA MADURO E COMPETENTE, ABORDANDO UM TEMA DIFÍCIL E PENOSO

– Descobri um ótimo filme pra gente assistir agora – fui avisando enquanto entrava no quarto de supetão, pegando Ludy de surpresa. Ela tirou os olhos do livro que estava lendo e me encarou, à espera de algo que a surpreendesse. Então, anunciei solene: – Rota Selvagem!
        Rota Selvagem? Fala sério! – retrucou Ludy, voltando os olhos para o livro. – Não estou disposta a encarar um filme violento, cheio de tiros e perseguições.
        – Não é nada disso! A sinopse diz que é um drama. Um road movie contando a trajetória de amadurecimento de um garoto de 15 anos na companhia de um cavalo chamado Pete. Acho que você vai gostar.
        Ludy resolveu dar uma chance, assistiu ao filme comigo e gostou! Suspeito que, assim como ela, muitos cinéfilos podem ter saltado essa opção no serviço de streaming, em razão do título inapropriado. Por outro lado, aqueles que deram o play na esperança de acompanhar um bom filme de ação, provavelmente terminaram decepcionados. Rota Selvagem, realizado em 2017 pelo cineasta inglês Andrew Haigh é um filme que a indústria do cinema não soube como vender para o público. Apesar de trazer cenas de estrada, não é propriamente um road movie. Apesar do protagonista passar por um penoso arco de transformações, não é um filme sobre amadurecimento, mas sim sobre o abandono e a solidão. Apesar do relacionamento entre o garoto e o cavalo estar no centro da trama, não se trata de uma história dedicada a enaltecer o valor da amizade. Antes de explicar tudo isso, precisarei esmiuçar a sinopse.
        Rota Selvagem conta a história de Charley Thompson (Charlie Plummer) que aos 15 anos mora em Portland, no Oregon, com o pai Ray (Travis Fimmel). O garoto leva uma vida solitária e marcada pela pobreza, já que seu pai, mulherengo e imaturo, não consegue suprir o sustento básico da casa, nem as carências deixadas pela mãe que o abandonou ainda pequeno. Por acaso, enquanto pratica suas corridas diárias, ele conhece Del (Steve Buscemi), um criador de cavalos que se dedica ao pequeno círculo de corridas da raça quarto-de-milha. Charley então consegue um emprego, onde vai aprender a se tornar um tratador. Além das orientações do experiente e paternal Del, ele também recebe o apoio e a simpatia da joqueta Bonnie (Chloë Sevigny). E termina por se apegar a Pete, o cavalo cansado que vive seu ocaso como grande corredor e está prestes a ser... cancelado! Quando a vida golpeia mais uma vez o solitário garoto, ele fica sem chão e só pode contar com seu apego a Pete. Decide roubar o cavalo e partir em busca da Tia Margy, de quem guarda lembranças da infância. Será uma jornada incerta e perigosa rumo ao Wyoming, na tentativa de alcançar aquilo que mais se aproxima do conceito de família e ficou impresso nas memórias afetivas de Charley.
        O título original do filme é Lean on Pete, o mesmo do romance escrito por Willy Vlautin do qual foi adaptado. Numa tradução livre, seria algo como “Contando com Pete”, no sentido de quem conta com o apoio de um amigo. O título adotado em Portugal, “O Meu Amigo Pete” se aproxima mais do conceito, mas tem o demérito de induzir o público a imaginar que se trata de uma produção leve e edificante, bem ao estilo das jornadas de amadurecimento exibidas na sessão da tarde. Nada disso! Rota Selvagem é um filme maduro, emocionalmente pesado, que mergulha profundo no universo psicológico do seu protagonista e acessa camadas que só conseguimos ver em alguns poucos filmes.
        Willy Vlautin, o autor do romance, é um músico country experiente e sensível, com vários álbuns lançados e alguns romances caprichados. Depois de ler seu Lean On Pete, o diretor Andrew Haigh ficou emocionalmente envolvido e decidiu adaptá-lo para as telas. Experiente na indústria do cinema – já trabalhou como assistente de montagem em filmes como Gladiador e Falcão Negro em Perigo, além de ter escrito e dirigido vários curtas e longas – Haigh mergulhou no universo das corridas de cavalos quarto-de-milha e conviveu com as pessoas pecualiares que o habitam. Escreveu vários tratamentos para o seu roteiro enquanto percorria a tal Rota Selvagem e compartilhou informações com o próprio autor do romance, Willy Vlautin, que também contribuiu para a adaptação.
        O esforço do diretor em alcançar credibilidade e verossimilhança nas telas foi bem-sucedido. Os personagens entram e saem de cena com naturalidade e compõem o retrato de um mundo que nós, espectadores, conhecemos quase nada, mas que nos parece autêntico. Talvez sua decisão mais importante tenha sido a de escalar o jovem ator Charlie Plummer para interpretar o protagonista. Naquele mesmo ano ele atuou no filme Todo o Dinheiro do Mundo, dirigido por Ridley Scott, no papel do neto sequestrado do magnata John Paul Guetty. Aqui, em Rota Selvagem, ele é onipresente na tela e carrega com facilidade a responsabilidade de concentrar toda a força emocional do filme. Merece aplausos e prêmios.
        Mas outras virtudes do diretor precisam ser ressaltadas. Ele encontrou a atmosfera certa para contar essa história, pondo o espectador aflito com o que possa acontecer a Charley e estimulando vontade de abraçá-lo, acolhê-lo, confortá-lo, ajudá-lo... criá-lo como um filho! A trilha sonora, com música experimental do compositor britânico James Edward Barker, foi decisiva para isso. Outra sacada do diretor foi salpicar seu filme com cenas dos personagens comendo, se alimentando em casa, numa lanchonete, num restaurante, em família... O alimento, com toda a carga simbólica que enseja, está no centro da construção dramática de Rota Selvagem. Um filme realizado com competência e sensibilidade!

Resenha crítica do filme Rota Selvagem

Título original: Lean on Pete
Título em Portugal: O Meu Amigo Pete
Ano de produção: 2017
Direção: Andrew Haigh
Roteiro: Andrew Haigh
Elenco: Charlie Plummer, Travis Fimmel, Chloë Sevigny, Steve Buscemi, Steve Zahn, Thomas Mann, Amy Seimetz, Justin Rain, Lewis Pullman e Frank Gallegos

Comentários

  1. Belíssima crônica sobre o filme, ainda não assisti e depois de ler, certamente vou procurar pra ver. Gosto muito desses filmes. Parabéns meia uma vez ...

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    1. Obrigado!!! Seu comentário é um incentivo! Fico animado para continuar escrevendo!

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