Entre Facas e Segredos: surpresa no final e ação o tempo todo

Cena do filme Entre Facas e Segredos
Entre Facas e Segredos: direção de Rian Johnson

O ROTEIRO EVITOU AS ARMADILHAS DO GÊNERO

Os romances policiais de mistério se tornaram uma febre por décadas, desde que Sir Arthur Conan Doyle emplacou seu Sherlock Holmes. Com o tempo, eles derivaram num tipo muito específico de ficção, onde o autor propõe um quebra-cabeça para estimular o raciocínio do leitor, enquanto o confunde com pistas falsas. Tentar descobrir a identidade do assassino, antes que ela seja revelada nas últimas páginas, tornou-se verdadeiro passatempo para os admiradores desse estilo de romance. Os anglo-saxões chegaram a criar um termo específico para se referir a esse gênero literário: o “whodunnit”, uma corruptela da expressão "Who has done it?" – numa tradução livre, algo como "Quem fez isso?", que ficaria melhor dito como: "Quem é o culpado?" 
        Um whodunnit que se preze tem que estar confinado a um ambiente restrito – uma mansão, um hotel ou um trem – que represente o microcosmo social composto por ricaços sovinas cercados pela plebe movida por cobiça. Tem que reunir um grande número de suspeitos, todos com motivos para cometer o tal crime. E tem que esconder toneladas de pistas falsas, que serão descartadas, uma a uma, por algum detetive implacável, mais famoso por seus dotes intelectuais do que pelos atributos físicos.
        A expressão mais vistosa do whodonnit foi Agatha Christie, autora de mais de 80 romances de sucesso, alguns deles transpostos para as telas, como Assassinato no Expresso do Oriente e Morte no Nilo. Seu mais notório personagem, o detetive belga Hercule Poirot, é tão genialmente racional quanto desprovido de modéstia, mas infalível em acabar com a festa dos incautos que tentam cometer o crime perfeito. A autora e seus seguidores repetiram à exaustão as convenções do gênero, o que terminou por gerar um certo desgaste junto ao público. O fato é que o whodunnit já não parecia ter mais novidades para oferecer, até que Rian Johnson apareceu em 2019 com seu filme Entre Facas e Segredos.
        Devo confessar, não fiquei empolgado para assistir, mas quando me deparei com o título no serviço de streaming, tive que conferir. Diante de um elenco vistoso, já imaginei o que teria pela frente: personagens interpretados com virtuosismo, numa morna homenagem aos romances policiais de mistério que marcaram época. Mordi a língua! Entre Facas e Segredos é uma produção engenhosa, divertida e envolvente, preparada numa mistura bem temperada de comédia dramática e thriller de mistério. Um entretenimento delicioso! Veja só a sinopse:
        Harlan Thrombey (Christopher Plummer), dono de uma editora de sucesso, fez fortuna como romancista de mistério. Está comemorando seus 85 anos com a família em sua mansão. A fauna de ricaços ávidos em pôr as mãos nos seus respectivos nacos de herança é diversificada: temos Linda (Jamie Lee Curtis), a filha mais velha, casada com Richard (Don Johnson) e seu filho Hugh (Chris Evans). Temos Walt (Michael Shannon), o filho mais novo, sua mulher Donna (Riki Lindhome) e seu filho Jacob (Jaeden Martell). Temos Joni (Toni Collette), viúva do seu falecido filho e sua filha Meg (Katherine Langford). Ah, e temos também a mãe do milionário, a bisa Wanetta! Além da enfermeira Marta (Ana de Armas), temos ainda um bom número de criados. O que todos os espectadores esperam acontece logo no início: o milionário aparece morto e ao que tudo indica, foi suicídio. Mas o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) está lá para provar que não foi nada disso. Ele entrevista um por um dos suspeitos e vai nos revelando cada um dos personagens envolvidos, suas personalidades e seus segredos. E termina por nos brindar com uma reviravolta.
        Entre Facas e Segredos, quem diria, não é um whodunnit tradicional! É um filme com alma de thriller, no melhor estilo de Alfred Hitchcock, que transcorre com agilidade e desenvoltura. O diretor e roteirista Rian Johnson, um aficionado dos romances de mistério policial, soube evitar as armadilhas do gênero e construiu, sobre uma tradicional estrutura de três atos, um roteiro brilhante – que lhe valeu uma indicação ao Óscar de melhor roteiro original. No primeiro ato ele nos apresenta os suspeitos e suas motivações, mas já no segundo, nos surpreende, revelando como se deu o crime. A partir de então, o que vemos é a luta dos personagens para manter seus segredos e evitar serem apanhados. No final, nos depararmos com um ótimo ponto de virada.
        Rian Johnson escreve todos os filmes que dirige. Fez isso em Vigartistas, Looper – Assassinos do Futuro e Star Wars: Os Últimos Jedi. Em Entre Facas e Segredos ele encontrou o tom certo, mostrando habilidade tanto nas cenas cômicas e dramáticas como nas de ação. Seu roteiro superou o ponto fraco do whodunnit, que está na narrativa ancorada basicamente na revelação do mistério ao final, apostando todas as fichas na promessa de uma grande surpresa. Mas aqui o diretor desenvolveu protagonistas sólidos, pelos quais o espectador se anima a torcer. Ao final, nos sentimos recompensados, não porque solucionamos o mistério, mas porque assistimos a personagens verossímeis que percorrem arcos dramáticos consistentes.
        O britânico Daniel Craig com sotaque de americano sulista e a bela Ana de Arnas esbanjando inocência também são ótimos bônus. Eis aqui um filme que está na minha lista dos que pretendo revisitar futuramente.


Resenha crítica do filme Entre Facas e Segredos

Título original: Knives Out
Título em Portugal: Knives Out: Todos São Suspeitos
Ano de produção: 2019
Direção: Rian Johnson
Roteiro: Rian Johnson
Elenco: Daniel Craig, Chris Evans, Ana de Armas, Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Toni Collette, Lakeith Stanfield, Katherine Langford, Jaeden Lieberher, Christopher Plummer, Noah Segan, Edi Patterson, Riki Lindhome, K Callan, Frank Oz, M. Emmet Walsh, Marlene Forte e Raúl Castillo

Comentários

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Siga a Crônica de Cinema