Julieta dos Espíritos: comédia dramática em tom de fantasia onírica

Cena do filme Julieta dos Espíritos
Julieta dos Espíritos: direção de Federico Fellini

ESTUDO APROFUNDADO DE UMA PERSONAGEM COMPLEXA

Eis que Fellini se torna... colorido! Julieta dos Espíritos, realizado em 1965, é o primeiro longa-metragem do diretor a abandonar o preto-e-branco, o que é significativo: comparável a quando Charlie Chaplin precisou incorporar o som ao seu universo fílmico. Mas ao contrário do que possam concluir os apressados, isso não significou uma rendição aos “novos rumos da modernidade”. Foi uma decisão estética, em perfeita sintonia com a temática que o diretor estava interessado em abordar. É verdade que em 1962 Fellini já havia experimentado lidar com as cores, no episódio que dirigiu para o filme Boccaccio '70. O fez por imposição dos produtores e sem grandes reflexões estéticas. Tanto que em 1963 ele retomou ao preto-e-branco para arrasar em Oito e Meio, uma de suas obras mais importantes.
        Em Julieta dos Espíritos, a cor é elemento essencial. O filme mergulha em fantasias e construções oníricas que demandam cores para expressar as ideias e os sentimentos que evocam. Lambuzando-se nelas, Fellini cria imagens de contos de fadas para desvendar o universo psicológico da protagonista. Seu interesse é provocar uma discussão profunda sobre o casamento e aquilo que ele chamava de tirania da relação monogâmica imposta pela sociedade. Para começar a analisar esse filme, uma boa dica é prestar atenção no seu título: Giulietta, a protagonista, tem o mesmo nome da atriz que a interpreta, Giulietta Masina, que vem a ser a mulher de Fellini na vida real. E os citados espíritos não são propriamente almas penadas ou assombrações à espreita no plano espiritual, mas sim expressões das memórias, sonhos e obsessões de Giulietta, que busca enxergar o exato oposto da realidade, embaralhando as percepções do próprio espectador. Ah, isso está ficando um tanto complicado! Creio que, antes de continuar, será necessário estabelecer uma rápida sinopse do filme.
        Julieta dos Espíritos conta a história de Giulietta Boldrini (Giulietta Masina), uma dona-de-casa da classe alta, casada com Giorgio (Mario Pisu), um profissional bem-sucedido, que lhe proporciona uma vida confortável. Vive em uma casa dos sonhos, é adulada por vários empregados e desfruta de muito luxo. Está sempre à disposição do marido e tudo faz para agradá-lo. Mas quando descobre que ele está tendo um caso, Giulietta vê seu mundo desmoronar. Contrata um investigador particular para segui-lo e acaba se aproximando da vizinha Suzy (Sandra Milo), que lhe apresenta várias formas de misticismo e a leva a participar de sessões espíritas. Por meio dessas experiências, Giulietta primeiro busca os caminhos para resolver o seu dilema conjugal, mas na medida em que sua percepção da realidade vai se misturando com as projeções do seu imaginário, ela embarca numa jornada de autoconhecimento, que poderá levá-la a alcançar um estado de independência e emancipação do casamento.
        Em tom de comédia dramática, francamente surrealista, Julieta dos Espíritos é um filme longo – são 137 minutos onde o ponto de vista do diretor é reiterado com insistência e explorado com redundância à exaustão. O roteiro, escrito por Fellini em parceria com seus tradicionais colaboradores Tullio Pinelli, Brunello Rondi e Ennio Flaiano, rompe deliberadamente com as estruturas clássicas da trama, que fica reduzida a uma alegoria cômica da manjada história de adultério. O estudo da personagem, no entanto, é aprofundado. Seu estado de espírito, sua índole, seus devaneios, sua busca por autoconhecimento... Giulietta tem múltiplas camadas e ela mesma se surpreende ao ser apresentada a elas.
        Para descrever o arco da personagem, Fellini lança mão de incontáveis metáforas, num espetáculo visual de grande impacto. Cenários mágicos e figurinos elaborados em detalhes, uma mise-en-scène planejada em milímetros, a música de Nino Rota sublinhando o tom de irrealidade... Tudo fotografado por Gianni Di Venanzo a partir de uma iluminação ousada e precisa. Fellini se esbalda, num verdadeiro delírio cromático, que confunde o espectador sobre o que é real e o que está no plano imaginário. Julieta dos Espíritos jamais se tornou uma unanimidade entre os críticos e muitos torceram o nariz. Para os cinéfilos de plantão, entretanto, deparar-se com o título nos serviços de streaming é sempre uma oportunidade especial. É só apertar o play para ver, mais uma vez, Fellini sendo Fellini.

Resenha crítica do filme Julieta dos Espíritos

Ano de produção: 1965
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiani, Tullio Pinelli e Brunello Rondi
Elenco: Giulietta Masina, Caterina Boratto, Friedrich von Ledebur, José Luis de Villalonga, Lou Gilbert, Mario Pisu, Mary Arden, Sandra Milo, Silvana Jachino, Sylva Koscina, Valentina Cortese e Valeska Gert

Leia também as crônicas sobre outros filmes dirigidos por Federico Fellini:

Comentários

  1. Já vi este filme. Achei-o bem confuso. Gostei muito não. Nem se compara ao belo e tristissimo "Estrada,da vida" ou " Noites de Cabiria".

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    1. Ah, Estrada da Vida e Noites de Cabíria sao grandes filmes. Representam Fellini num momento diferente. Aqui ele experimenta outros caminhos narrativos.

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  2. Ainda não assisti mas, sua crônica me deixou bem interessada. Onde assisto?

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    1. Assisti outro dia na grade de programação do Telecine. Mas eventualmente ode estar disponível até mesmo no YouTube!

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  3. Esse filme me leva pra um lugar onde eu não vivi, vai entender.

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    1. O cinema é assim mesmo! Traz a oportunidade de vivenciar experiências que nossa realidade cotidiana dificilmente permitirá.

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