Asas do Desejo: um poema cinematográfico sobre o que é ser humano

Cena do filme Asas do Desejo
Asas do Desejo: direção de Wim Wenders

UM FILME QUE SÓ SE MATERIALIZA NOS OLHOS DE CADA ESPECTADOR

O cinema nasceu mudo, mas sempre flertou com as palavras. Elas foram o recurso do qual os cineastas lançaram mão, quando precisaram costurar narrativas e lidar com conteúdo expositivo. Por meio de letreiros, intercalados aqui e ali, a sétima arte deu sua contribuição para ampliar a expressividade da língua, usada para comunicar e emocionar. Os meios estilísticos da literatura apontaram caminhos seguros, mas foi nas mãos dos cineastas mais inventivos que apareceram novas oportunidades de relacionar palavras e imagens, para aprimorar a representação do vasto universo mental que nos torna humanos. É disso que se trata o filme Asas do Desejo, realizado em 1987 pelo alemão Wim Wenders. Essa produção impecável, vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes, ganhou status de filme cult e foi recentemente restaurada. Trouxe seu importante legado de celuloide para o mundo da tecnologia digital. Continua exuberante, provocativa e abarrotada de conteúdo valioso, que se revela em cada visitação que nos dispomos a fazer.
        Sim, é preciso estar disposto a fruir um cinema denso e minucioso, para encarar suas mais de duas horas de exibição. Porém, a odisseia intelectual que o filme estimula é compensadora. Alguns poderão considerá-lo longo demais, outros poderão torcer o nariz para o melancólico preto-e-branco que ocupa a tela na maior parte do tempo – ainda que cenas coloridas apareçam de vez em quando, para atender às demandas dramáticas que costuram a narrativa imposta pelo diretor. Asas do Desejo é um filme complexo, que evita se apresentar como um pacote fechado de significados e emoções. Adquire sua materialidade nos olhos de cada espectador, sem exigir consenso ou cobrar posicionamentos. A fotografia exuberante de Henri Alekan bem que tenta roubar nossa atenção, mas o texto recitado em cena é eloquente e perturbador. Mas chega de suspense! Vamos falar da sinopse para poder discorrer sobre o conteúdo:
        Asas do Desejo se passa numa triste Berlim, ainda separada pelo muro erguido pelos comunistas. Os protagonistas são anjos da guarda – sim, os seres celestiais que velam pelos humanos e os protegem do mal. Possuem asas, mas o que os caracteriza melhor é um elegante trench coat, ornado por um cachecol. Conseguem ouvir os pensamentos das pessoas e compreendem suas dores. Percebem o caldo emocional que os humanos preparam no dia-a-dia, sem jamais experimentar a realidade sensorial que os move. Não sabem dos aromas, dos paladares, das cores – o mundo que enxergam é monocromático. Mas podem ser vistos pelas crianças, ainda providas de inocência e pureza. Um desses anjos, Damiel (Bruno Ganz), se ressente de não poder conhecer o alcance da sensualidade, que norteia a existência dos homens. Quando encontra a trapezista Marion (Solveig Dommartin), uma humana que é pura sensibilidade, ele se apaixona. Disposto a abrir mão da imortalidade, cai na terra com sua armadura. Aberto aos aprendizados, está decidido a viver a dimensão sensual da sua paixão. Além do amigo Cassiel (Otto Sander), que permanece no plano angelical para guardá-lo, Damiel contará com outra ajuda inusitada: a de um anjo caído, que como ele fez sua opção pela vida terrena. Trata-se de Peter Falk, o astro da TV que se imortalizou como o detetive Columbus, que interpreta a si mesmo.
        Asas do Desejo tem essa provocação espiritual e religiosa, mas atrair o espectador por sua dimensão visual. A cidade de Berlim aqui fotografada, torna-se uma personagem viva – não poderia ficar de fora do título original, Der Himmel über Berlin (O Céu de Berlim). É um deleite passear por locações memoráveis, como a impressionante sala de leitura da sua Biblioteca Estadual, a Potsdamer Platz e a estação Anhalter Bahnhof, todas flagradas dois anos antes da queda do muro. Wim Wenders conta que chegou à cidade depois de morar dez anos nos Estados Unidos, disposto a realizar um filme onde pudesse aproveitar as locações que tanto amava. Vagou de bicicleta por todos os cantos em busca de inspiração. A ideia de usar anjos como protagonistas veio a calhar, pois eles poderiam ser colocados em qualquer lugar que imaginasse.
        O passo seguinte para Wenders foi conceber uma história que valesse a pena ser filmada. Asas do Desejo surgiu aos poucos na sua mente, gestado mais como um poema cinematográfico do que como uma prosa natural. Nem sequer se preocupou em escrever um roteiro. As filmagens aconteceram de forma orgânica, de improviso, na medida em que novos versos lhe ocorriam, dia após dia. É claro que esse método de trabalho trouxe problemas. Um deles foi o envolvimento do ator Peter Falk, que prontamente atendeu ao chamado do diretor, porém, permaneceu em Berlim por poucos dias, o que exigiu doses imensas de improviso de toda a equipe. Outro entrevero envolveu o ministro do cinema da então RDA, que não autorizou as filmagens no lado oriental da cidade. Um filme sobre anjos, seres espirituais que podem andar para lá e para cá... atravessando muros, seria um disparate! Além do mais, o filme de Wenders não tinha um roteiro, o que impossibilitaria o exercício de qualquer tipo de controle sobre a produção. O cineasta resolveu o problema: pediu a um amigo que captasse secretamente algumas cenas do lado de lá do muro, que depois foram contrabandeadas para o ocidente.
        Este filme nos chega como uma obra cerebral, que cutuca os significados da existência e nos coloca de frente para a transitoriedade da vida. Wenders se vale do poema Canção de Ser Criança, escrito pelo vencedor do Nobel de literatura, Peter Handke, para estabelecer um poderoso leitmotiv que percorre o filme inteiro. “Quando a criança era criança / Não sabia que era criança / Tudo lhe parecia ter alma / E todas as almas eram uma”. Em seus versos insistentes, o autor fala sobre o que é ser criança e de como perdemos esse ser infantil na medida em que envelhecemos. O cineasta os usa para completar seu quebra-cabeça, montado em uma estrutura narrativa sofisticada, difícil de ser digerida pelo grande público. A presença carismática de Bruno Ganz, no entanto, é o grande trunfo de Wim Wenders. O ator contribui para deixar Asas do Desejo ainda mais memorável, especialmente para os cinéfilos que cultuam a sétima arte.
        Ah, nesse ponto, vale a pena comentar uma curiosidade: o escritor alemão Richard Reitinger foi convocado para escrever o roteiro de uma versão americana desse filme. Trata-se de Cidade dos Anjos, dirigido em 1997 por Brad Siberling e estrelado por Meg Ryan e Nicolas Cage. Mas essa já é uma outra história – bem menos... poética!

Resenha crítica do filme Asas do Desejo

Título original: Der Himmel über Berlin
Ano de produção: 1987
Direção: Wim Wenders
Roteiro: Wim Wenders e Peter Handke
Elenco: Bruno Ganz, Solveig Dommartin, Otto Sander, Peter Falk, Curt Bois, Hans Martin Stier, Elmar Wilms, Sigurd Rachman e Beatrice Manowski

Comentários

  1. Que crônica linda, bem escrita e, para mim, muito emocionante. Amo esse filme. Muito obrigado por captar elementos tão importantes da narrativa envolvente desta obra de Wenders.

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  2. Ah. muito obrigado! Seu feedback é valioso e me anima a continuar escrevendo.

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  3. Comentário bastante esclarecedor. Valeu!

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  4. Obra prima, obrigado, seguindo sempre as suas dicas. É o tipo de filme para ver sozinho, é como vc disse, é muito particular o que cada um sente assistindo essa obra.

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    Respostas
    1. Fico feliz que tem acompanhado a Crônica de Cinema, Alberto. Há filmes que ressaltam as experiências individuais e nos marcam pessoalmente. Esse é um deles!

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  5. Vou rever estes filme depois de sua impecável narrativa esclarecedora
    Vou rever o filme com outro olhar
    Grata ABS

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