Blonde: uma biografia ficcional de Marilyn Monroe
Blonde: direção de Andrew Dominik
REFINAMENTO ARTÍSTICO BASEADO NUM ROMANCE FICCIONAL
Minha geração já não viveu a intensidade do mito Marilyn Monroe. Quando passei a ter olhos para a sua sensualidade, a aura de símbolo sexual que a envolvia já estava desbotada – outras musas mais ousadas, mais modernas e mais desnudas já dominavam a mídia. Estranhamente, as duas palavras que via associadas ao nome daquela loira platinada eram vulgaridade e futilidade, talvez como resultado da iconografia que deixou como legado e de alguns filmes tolos que exploravam sua estampa de mulher fatal – Quanto Mais Quente, Melhor e Os Homens Preferem as Louras são os únicos aos quais assisti. Sobre a vida dessa celebridade eternizada no panteão de Hollywood, sabia apenas que havia mantido um polêmico caso com o presidente americano John Kenedy, que fora casada com o famoso escritor e dramaturgo Arthur Miller e que cometera suicídio, depois de se entupir com barbitúricos na solidão do próprio quarto. Foi assim, desavisado e sem conhecimentos prévios, que me dispus a apertar o play em Blonde, filme de 2022 dirigido por Andrew Dominik. Fui seduzido por uma bela capa em destaque no serviço de streaming, ilustrada com a foto de uma Ana de Armas caracterizada à perfeição como Marilyn Monroe. Envolvido por um cinema competente e bem realizado, embarquei numa história que começou triste e só cresceu em melancolia, até o derradeiro suspiro da protagonista, quase três horas depois. De forma alguma podemos pôr o rótulo de entretenimento nessa produção provocativa. Ela está mais para um ensaio antropológico sobre os efeitos da máquina hollywoodiana. Esperava por um drama biográfico convencional, mas ao invés disso assisti a uma obra focada em esmagar o mito construído ao redor da biografada e ressaltar a sua tragédia pessoal. Precisei fazer algumas pesquisas para poder digeri-la.
Comecei com a busca de informações sobre o romance intitulado Blonde, no qual o filme se baseou. Ele foi escrito em 1999 pela americana Joyce Carol Oates. Não me dispus a lê-lo – são mais de 700 páginas, onde a autora especula sobre a personalidade da introspectiva Norma Jeane e sobre como ela incorporou seu alter-ego, a esfuziante Marilyn Monroe. A autora se vale de uma mistura de perspectivas narrativas para recriar a voz interior de Norma Jeane e intercalá-la com as impressões de vários personagens que conviveram com ela, além de mencionar relatórios e documentos policiais. Ela afirma que leu apenas uma das várias biografias publicadas sobre a estrela, mas assistiu a todos os seus filmes. Ao reunir vários fragmentos de fatos verdadeiros, a escritora os misturou com ficção, para interpretar as reações e as decisões tomadas pela protagonista. Conseguiu retratá-la de forma viva e pulsante, mas o que entregou para o leitor foi um desenho com os traços imprecisos, baseados em deduções e especulações – como ela dever ter se sentido marginalizada ao ser criada como órfã, como era difícil ter que lidar com a necessidade de se mostrar sempre bela e extrovertida, como a agitação da fama contrastava com uma vida doméstica solitária, o quão dolorido seria tropeçar nas traições de um marido de quem só esperava proteção...
O diretor neozelandês Andrew Dominik leu o romance de Joyce Carol Oates em 2002, mas decidiu adaptá-lo para as telas apenas em 2010. O roteiro que escreveu expressa sua visão pessoal sobre o livro e ressalta a tragédia de Norma Jeane. É, portanto, mais um filtro que termina sobreposto ao da autora. A diferença é que o diretor leu tudo o que há para se ler sobre Marilyn Monroe. Fez uma pesquisa em profundidade, conversou com as pessoas que a conheceram, visitou todos os locais onde ela viveu e reuniu uma grande quantidade de imagens. Mas se concentrou em adaptar o livro. Abandonou sua narrativa fragmentada e buscou uma linha dramática mais contínua. Seu interesse era o de investigar os dramas de infância de Norma Jeane e descobrir como eles afetaram a sua visão de mundo e ampliaram sua natureza destrutiva, até culminar no suicídio.
Em filmes anteriores, como O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford e O Homem da Máfia, Dominik mostrou suas habilidades em adaptar romances, para criar universos visuais consistentes e elaborados. Em Blonde ele se superou! Mostrou notável sensibilidade artística ao recriar em detalhes toda uma coleção de fotos e películas. Resgatou a vasta memória coletiva que existe sobre Marilyn Monroe, mas incorporou novos significados. É como se tentasse mostrar como a biografada se sentia no momento em que uma foto era clicada, ou no instante em que o diretor de algum filme gritava: “ação”. Seu planejamento visual é primoroso e obsessivo. Segue a lógica do material iconográfico que usou como referência. O diretor não se importa em alternar cenas em preto-e-branco com imagens coloridas, em diferentes formatos de tela, tons saturados ou pálidos, tratamentos de computação gráfica... O resultado pode parecer improvisado, mas não se engane, cinéfilo: exigiu muito planejamento e empenho de vários profissionais.
Blonde fica com essa cara de delírio onírico, embalado por uma trilha sonora perturbadora, composta por Nick Cave e Warren Ellis, mas é na interpretação hipnótica de Ana de Armas que o filme ganha sua expressão mais angustiante. A atriz consegue projetar verossimilhança na tela. Mostra uma Norma Jeane autêntica, ainda que nós, espectadores munidos apenas com referências de Marilyn Monroe, não estejamos seguros de que sejam reais – será que ela foi assim tão ansiosa, aflita e perturbada? Deve ter sido, para ter posto fim à própria vida de maneira tão melancólica.
Esse é um filme dolorido e difícil de assistir, onde as cenas pesadas se sucedem sem piedade – violência sexual, abortos trágicos, delírios confusos, humilhações degradantes... Blonde não se furta em expressar dor e sofrimento, sem dar um minuto de trégua para o espectador. É assim que o diretor nos faz ver o quanto de falsidade e hipocrisia ficaram escondidos para sempre em cada uma das fotos e filmes que Marilyn Monroe nos deixou como legado. Era uma atriz talentosa e inteligente, sem escrúpulos na hora de se entregar sexualmente. No final, tornou-se um mito, perpetuado mais por narrativas e metáforas do que por fatos verificáveis.
Direção: Andrew Dominik
Roteiro: Andrew Dominik
Elenco: Ana de Armas, Lily Fisher, Adrien Brody, Bobby Cannavale, Julianne Nicholson, Caspar Phillipson, Toby Huss, Sara Paxton, David Warshofsky, Evan Williams, Xavier Samuel, Michael Masini, Luke Whoriskey, Rebecca Wisocky e Ned Bellamy
Comecei com a busca de informações sobre o romance intitulado Blonde, no qual o filme se baseou. Ele foi escrito em 1999 pela americana Joyce Carol Oates. Não me dispus a lê-lo – são mais de 700 páginas, onde a autora especula sobre a personalidade da introspectiva Norma Jeane e sobre como ela incorporou seu alter-ego, a esfuziante Marilyn Monroe. A autora se vale de uma mistura de perspectivas narrativas para recriar a voz interior de Norma Jeane e intercalá-la com as impressões de vários personagens que conviveram com ela, além de mencionar relatórios e documentos policiais. Ela afirma que leu apenas uma das várias biografias publicadas sobre a estrela, mas assistiu a todos os seus filmes. Ao reunir vários fragmentos de fatos verdadeiros, a escritora os misturou com ficção, para interpretar as reações e as decisões tomadas pela protagonista. Conseguiu retratá-la de forma viva e pulsante, mas o que entregou para o leitor foi um desenho com os traços imprecisos, baseados em deduções e especulações – como ela dever ter se sentido marginalizada ao ser criada como órfã, como era difícil ter que lidar com a necessidade de se mostrar sempre bela e extrovertida, como a agitação da fama contrastava com uma vida doméstica solitária, o quão dolorido seria tropeçar nas traições de um marido de quem só esperava proteção...
O diretor neozelandês Andrew Dominik leu o romance de Joyce Carol Oates em 2002, mas decidiu adaptá-lo para as telas apenas em 2010. O roteiro que escreveu expressa sua visão pessoal sobre o livro e ressalta a tragédia de Norma Jeane. É, portanto, mais um filtro que termina sobreposto ao da autora. A diferença é que o diretor leu tudo o que há para se ler sobre Marilyn Monroe. Fez uma pesquisa em profundidade, conversou com as pessoas que a conheceram, visitou todos os locais onde ela viveu e reuniu uma grande quantidade de imagens. Mas se concentrou em adaptar o livro. Abandonou sua narrativa fragmentada e buscou uma linha dramática mais contínua. Seu interesse era o de investigar os dramas de infância de Norma Jeane e descobrir como eles afetaram a sua visão de mundo e ampliaram sua natureza destrutiva, até culminar no suicídio.
Em filmes anteriores, como O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford e O Homem da Máfia, Dominik mostrou suas habilidades em adaptar romances, para criar universos visuais consistentes e elaborados. Em Blonde ele se superou! Mostrou notável sensibilidade artística ao recriar em detalhes toda uma coleção de fotos e películas. Resgatou a vasta memória coletiva que existe sobre Marilyn Monroe, mas incorporou novos significados. É como se tentasse mostrar como a biografada se sentia no momento em que uma foto era clicada, ou no instante em que o diretor de algum filme gritava: “ação”. Seu planejamento visual é primoroso e obsessivo. Segue a lógica do material iconográfico que usou como referência. O diretor não se importa em alternar cenas em preto-e-branco com imagens coloridas, em diferentes formatos de tela, tons saturados ou pálidos, tratamentos de computação gráfica... O resultado pode parecer improvisado, mas não se engane, cinéfilo: exigiu muito planejamento e empenho de vários profissionais.
Blonde fica com essa cara de delírio onírico, embalado por uma trilha sonora perturbadora, composta por Nick Cave e Warren Ellis, mas é na interpretação hipnótica de Ana de Armas que o filme ganha sua expressão mais angustiante. A atriz consegue projetar verossimilhança na tela. Mostra uma Norma Jeane autêntica, ainda que nós, espectadores munidos apenas com referências de Marilyn Monroe, não estejamos seguros de que sejam reais – será que ela foi assim tão ansiosa, aflita e perturbada? Deve ter sido, para ter posto fim à própria vida de maneira tão melancólica.
Esse é um filme dolorido e difícil de assistir, onde as cenas pesadas se sucedem sem piedade – violência sexual, abortos trágicos, delírios confusos, humilhações degradantes... Blonde não se furta em expressar dor e sofrimento, sem dar um minuto de trégua para o espectador. É assim que o diretor nos faz ver o quanto de falsidade e hipocrisia ficaram escondidos para sempre em cada uma das fotos e filmes que Marilyn Monroe nos deixou como legado. Era uma atriz talentosa e inteligente, sem escrúpulos na hora de se entregar sexualmente. No final, tornou-se um mito, perpetuado mais por narrativas e metáforas do que por fatos verificáveis.
Resenha crítica do filme Blonde
Data de produção: 2022Direção: Andrew Dominik
Roteiro: Andrew Dominik
Elenco: Ana de Armas, Lily Fisher, Adrien Brody, Bobby Cannavale, Julianne Nicholson, Caspar Phillipson, Toby Huss, Sara Paxton, David Warshofsky, Evan Williams, Xavier Samuel, Michael Masini, Luke Whoriskey, Rebecca Wisocky e Ned Bellamy
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