O Processo: crítica à burocracia opressora do sistema judiciário

Cena do filme O Processo
O Processo: direção de Orson Welles

O DIRETOR DEIXA SUA INCONFUNDÍVEL MARCA AUTORAL

Dia desses, num dos canais da TV por assinatura, assisti ao filme O Processo, realizado em 1962 por Orson Welles. Que grande oportunidade – eventos assim me animam a continuar como assinante! O longa-metragem é inspirado no romance homônimo de Franz Kafka, o escritor tcheco que se notabilizou por suas histórias repletas de conflitos psicológicos e costuradas com retalhos de realismo, delírios e originalidade. O filme segue na mesma linha. Emprega uma narrativa visual arrojada para destacar a natureza angustiante e descabida da história. Mas antes de falar de cinema, será preciso destrinchar um pouco mais a obra literária.
        Publicado postumamente em 1925, O Processo é um livro perturbador. A obra é amplamente conhecida, consagrada como uma das mais importantes da literatura moderna. Conta a história de Josef K., um alto funcionário de um banco que é tirado da cama por oficiais de justiça. Estão lá para prendê-lo, mas não revelam por qual motivo. Tudo o que K. sabe é que precisará aguardar um telefonema do tribunal, onde deverá se apresentar para sua primeira audiência. Enquanto corre o tal processo, ele segue com sua vida normal, mas agora com a preocupação angustiante de atender aos requisitos de uma pendenga judicial sobre a qual não tem qualquer informação. Depois de audiências inúteis, sempre em locais e circunstâncias deprimentes, ele percebe que todos ao seu redor, inclusive os colegas do escritório, possuem estreitas ligações com o tribunal e com o sistema de justiça. Sem meios de defesa, Josef K. caminha na direção de uma condenação iminente.
        Antes de ler O Processo, conhecia apenas os comentários lacônicos dos professores que me recomendaram o livro: o protagonista é preso e submetido a um tribunal, sem que lhe seja concedido acesso às informações sobre quem o processa, nem por qual motivo. Não sabe nem se há alguma alegação de crime. Tal sinopse me pareceu uma crítica aos regimes totalitários e fascistas, onde atrocidades contra os indivíduos são cometidas em nome de uma coletividade supostamente primaz. Depois de ler O Processo, percebi que não é nada disso! Kafka escreveu o livro no início dos anos 1920, quando não teve tempo de conhecer as monstruosidades arquitetadas e depois postas em prática por Hitler e seus parceiros ditadores. A crítica que ele faz é mais estrutural. Está endereçada ao próprio sistema judiciário, que se inflou em burocracia, estendeu-se feito erva daninha por todos os campos da atividade humana e passou a lidar com leis pervertidas, que protegem os culpados que deveriam punir.
        É claro que os labirintos do judiciário foram construídos sobre a estrutura emaranhada do estado e ambos acumulam para si vantagens em progressão geométrica. Apenas os advogados sabem o que é justo e podem transitar pelos corredores da lei. Apenas os políticos sabem o que é o bem comum e podem movimentar o dinheiro dos contribuintes. Quanto ao cidadão comum, pode tentar se tornar um advogado ou um político, mas então, já não será comum. Será especial! Terá acesso às leis e ao dinheiro dos contribuintes.
        Antes que o leitor me acuse de fazer uma leitura por demais personalista do livro, vamos retomar a abordagem de Orson Welles em seu filme. O diretor segue fiel ao romance, ainda que tenha feito algumas mudanças. Abriu o filme com a parábola narrada por Kafka sobre um prisioneiro oprimido por seu carcereiro e depois mudou a ordem dos capítulos. Modernizou alguns aspectos da história e decidiu modificar o arco do protagonista. No livro, Josef K. se deteriora e termina assassinado por seus carrascos, que o executam a golpes de faca depois de alguma hesitação – burocratas com crise de consciência! No filme, Welles preferiu ver K. gargalhar da cara dos seus algozes, porque não conseguiram usar a faca. Sua morte vem como resultado de uma explosão. O protagonista de Welles mantem a... integridade!
        O diretor também incluiu no enredo uma sequência onde introduz o conceito dos computadores, por óbvio ausente no livro de Kafka. Sua concepção chegou a ser bastante ousada. Mostrou que a máquina consegue até prever qual será o fim trágico do protagonista, mas foi eliminada no corte final. Segundo Welles, a ideia não funcionou como deveria.
        De certa forma, a escolha de Anthony Perkins para interpretar Josef K. também foi outra interferência de Welles, que resultou numa adaptação mais... personalista do livro. O ator contracena com atrizes consagradas e identificadas como símbolos sexuais, como Jeanne Moreau, Romy Schneider e Elsa Martinelli. Todas vivem personagens belas e sedutoras, em cenas que denotam certo envolvimento romântico, mas a interação com o protagonista resulta desajeitada e sem a esperada química. Anthony Perkins, que era homossexual – essa era uma questão relevante em 1962 – trouxe novas camadas psicológicas para Josef K e o tornou um protagonista ainda mais desconfortável com sua trajetória.
        Orson Welles deixou em O Processo uma marca autoral inconfundível. Ousado e grandioso, é um filme tecnicamente impecável. Seu roteiro está repleto de tiradas de humor negro e mantém a essência do romance de Kafka. Sua concepção visual, com movimentos de câmera ousados e ângulos inusitados, denota grande sensibilidade artística, especialmente ao enaltecer os aspectos oníricos e surreais da história. Nas tomadas longas, filmadas em um expressivo preto-e-branco pelo diretor de fotografia, Edmond Richard, a natureza paranoica do protagonista aparece reforçada, enquanto respiramos a mesma atmosfera claustrofóbica do romance. Os cenários gigantescos e sempre repletos de elementos, por outro lado, expressam a força esmagadora do sistema judiciário que oprime, confunde, tapeia, ilude... Não há dúvidas, estamos diante de um dos melhores filmes de Orson Welles.
        Para finalizar, gostaria de voltar ao prólogo do filme, quando o diretor narra a parábola de Kafka sobre como as coisas eram “antes da lei”. As ilustrações que vemos na tela são obra do artista Alexandre Alexeieff, que trabalhava em parceria com a americana Claire Parker. A dupla desenvolveu uma técnica notável, que consiste na utilização de milhares de alfinetes espetados em um quadro branco. Conforme são iluminados, os alfinetes projetam sombras, que produzem os meios-tons necessários para dar as formas e os volumes presentes na imagem. O resultado gráfico é refinado e bastante sutil, a ponto de passar despercebido pela maioria dos espectadores. Tomei conhecimento disso só depois que empreendi minha pesquisa para escrever a presente crônica, mas encontrei um vasto material em imagens e vídeos, todos disponíveis na internet. Os interessados só precisam pesquisar pelo nome dos artistas!

Resenha crítica do filme O Processo

Ano de produção: 1962
Direção: Orson Welles
Roteiro: Orson Welles
Elenco: Anthony Perkins, Jeanne Moreau, Romy Schneider, Elsa Martinelli, Suzanne Flon, Orson Welles, Akim Tamiroff, Madeleine Robinson, Paola Mori, Arnoldo Foà, Fernand Ledoux, Michael Lonsdale, Max Buchsbaum, Max Haufler, Maurice Teynac, Wolfgang Reichmann, Thomas Holtzmann, Billy Kearns, Jess Hahn, Naydra Shore, Carl Studer, Jean-Claude Rémoleux, Raoul Delfosse, William Chappell

Comentários

  1. Muito bom o sua crônica, vi esse filme desarmado,nao tive como fazer alguma defesa, eu fiquei "enlouquecido " com os movimentos de câmera, e a exuberante direção do bom diretor que sempre foi WELLES.

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    1. Ah, muito obrigado. O filme é mesmo magnético. Vai nos atraindo para um final terrível!

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  2. Filme e crônica ótimos 👍

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  3. Sua crônica.me deu uma outra visão do filme . Nunca vi o filme por este ângulo. Ótima crônica

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    1. Obrigado! É isso que me motiva escrever sobre os filmes: encontrar outros ângulos!

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