Tropa de Elite: cinema de alto impacto

Cena do filme Tropa de Elite
Tropa de Elite: direção de José Padilha

CINEMA NACIONAL VIVO E PULSANTE

Comentar sobre o filme brasileiro mais comentado de todos os tempos é uma ousadia, já que corro o risco de cair em redundância. Graças aos fãs incondicionais e detratores enraivecidos que o filme conquistou, Tropa de Elite, dirigido em 2007 por José Padilha, já foi dissecado à exaustão na mídia tradicional e na Internet. Entretanto, a visão individual de cada cinéfilo sempre traz perspectivas novas para o debate. Deixe-me apresentar a minha, para ajudar a manter a fogueira acesa.
        Quando entramos na sala de exibição para assistir a Tropa de Elite, Ludy e eu não trazíamos informações antecipadas sobre o filme. Minha mulher, porque não tinha interesse no tema e só estava lá para usufruir de algum entretenimento. Quanto a mim, tentava não me contaminar por opiniões e pré-julgamentos, mas temia me deparar com uma reles apropriação oportunista da estética apresentada por Cidade de Deus. Saímos ambos surpresos e impressionados – Ludy, com a contundência da mensagem, eu, com a qualidade do cinema.
        O impacto causado por Tropa de Elite na mentalidade do brasileiro tem que ser medido em escala sísmica. Ainda não havia assistido a nenhum filme produzido no Brasil onde o policial era apresentado como um autêntico herói – a não ser alguns fósseis como Vigilante Rodoviário, série de TV dos anos 1960, que quando era criança já me parecia embolorada. Nas telonas, as histórias eram contadas a partir do ponto de vista dos foras da lei. Ainda que não houvesse a intenção explícita de fazer apologia ao crime, era sempre a perspectiva do bandido que impulsionava a narrativa. Marginais e marginalizados recebiam o mesmo crachá de protagonista, enquanto os policias tinham que se contentar em coadjuvar ou posar de antagonistas. Então chegou o Capitão Nascimento, metendo os dois pés na porta para mudar o paradigma.
        O filme é tão famoso que não pretendo perder tempo apresentando sua sinopse. Tropa de Elite nasceu na cabeça de José Padilha como um documentário, que planejava rodar na esteira do sucesso alcançado com Ônibus 174. Preparou-se, absorvendo o conteúdo do livro Elite da Tropa, uma escrita colaborativa entre o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o escritor André Batista e o ex-policial do BOPE Rodrigo Pimentel. Depois de dois anos de pesquisa e várias entrevistas com policiais, Padilha alcançou pleno domínio do assunto espinhoso que tencionava abordar: a violência no Rio de Janeiro, pela perspectiva do policial violento. Bem que tentou seguir adiante, mas depois de dois dias de filmagem, percebeu que o formato de documentário não prosperaria – as resistências corporativas e institucionais eram intransponíveis. Decidiu realizar uma obra de ficção, mas manteve o conceito do filme ancorado na realidade.
        Bráulio Mantovani, que já havia escrito Cidade de Deus, foi o convocado para escrever o roteiro de Tropa de Elite, cujo tratamento final recebeu intervenções de José Padilha e também de Rodrigo Pimentel. Nenhuma das histórias narradas no livro Elite da Tropa foi aproveitada. Ao invés disso, Padilha optou por abordar como pano de fundo uma história verdadeira – e das mais absurdas – sobre a visita do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro, que aconteceu em 1997, quando as autoridades cariocas realizaram uma das operações mais violentas até então, apenas para garantir o sono de Sua Santidade, que se hospedou nos arredores de uma favela. A trama acabou ancorada em três personagens: o Capitão Nascimento (Wagner Moura), que está cansado de tanta violência e tenta se desligar do BOPE, além dos policiais Neto Gouveia (Caio Junqueira) e André Matias (André Ramiro), que são honestos e ávidos por fazer a diferença na luta contra o crime organizado e a corrupção da polícia.
        Para conduzir o espectador, Mantovani usou a mesma técnica que empregou em Cidade de Deus: criou um narrador, capaz de trazer verossimilhança e gerar empatia. O moldou a partir de um personagem real, o aspirante André Matias, que cursava a faculdade de direito e tinha uma visão mais idealista da profissão de policial. Partiram para as filmagens, em grande parte realizadas em favelas no Rio de Janeiro, sob condições estressantes. Há relatos de incidentes envolvendo o roubo de armas cênicas e outros entreveros, que atrasaram o cronograma e causaram um rombo no orçamento. Mas foram apenas alguns dos obstáculos que precisaram ser superados pelos realizadores. O maior deles surgiu depois, no momento da edição.
        No primeiro corte, José Padilha percebeu que a história não estava funcionando. Os picos de tensão só apareciam na segunda metade do filme, quando o Capitão Nascimento roubava todas a cenas. A decisão que tomou foi ousada: mudar o protagonista de Tropa de Elite. Ao invés do aspirante Matias, o novo herói seria o Capitão Nascimento, esse sim, um narrador mais envolvente, capaz de conduzir o espectador com mais propriedade. Quem precisou fazer toda a mágica e ajudou os roteiristas a encontrar as soluções narrativas necessárias foi o montador Daniel Rezende, um dos profissionais mais experientes do nosso cinema – o filme dirigido por ele, Bingo: O Rei das Manhãs é imperdível para os que têm fome de cinema de qualidade.
        Há muito mais o que falar sobre Tropa de Elite, especialmente se decidir entrar na seara política, porém, quero me deter no campo do cinema. Tenho o filme como um impressionante exemplo de como a arte cinematográfica é viva e pulsante. Foi forjado a partir de impulsos criativos diversos e veio sendo moldado por profissionais habilidosos, sempre trabalhando em equipe. Conseguiu ser virado e revirado até funcionar corretamente, porque suas partes foram fabricadas com componentes de qualidade: personagens verdadeiros, dramaturgia consistente, concepção audiovisual precisa e atuações arrebatadoras.
        Como grande cineasta que é, José Padilha conseguiu o feito de manter a integridade do filme, desde a concepção até o corte final, que finalmente chegou ao público – passando antes pelas mãos dos piratas, é bem verdade! Sou grande fã do diretor, porque vejo nele a habilidade de transformar seus cinegrafistas em testemunhas oculares da história que está sendo contada. Ele consegue um sincronismo entre o sentido do texto contido nas linhas de diálogo e os movimentos de câmera, o que sugere novos subtextos e cria um envolvimento mais orgânico com os personagens. Seu cinema transcorre cerebral e emocional em doses sempre desequilibradas, como acontece na vida.
        Até hoje Ludy ainda guarda a experiência transformadora que trouxe na saída do cinema. Minha mulher nunca se atreveu a revisitar o filme, que achou tão verdadeiro quanto violento. Já este cinéfilo orgulhoso com tamanha pérola do cinema nacional, volta e meia se rende. Perdi as contas de quantas vezes me peguei entretido com Tropa de Elite, examinando as grandes miudezas que ele ainda tem para oferecer.

Resenha crítica do filme Tropa de Elite

Ano de produção: 2007
Direção: José Padilha
Roteiro: Bráulio Mantovani, José Padilha e Rodrigo Pimentel
Elenco: Wagner Moura, André Ramiro, Caio Junqueira, Milhem Cortaz, Fernanda Machado, Paulo Vilela, Fernanda de Freitas, Maria Ribeiro, Fábio Lago, André Di Mauro, Juliano Cazarré, Marcelo Valle, Marcelo Escorel, Sandro Rocha e Paulo Hamilton



Comentários

Postar um comentário

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Siga a Crônica de Cinema