O Jardineiro Fiel: sobram dilemas éticos e morais
O Jardineiro Fiel: direção de Fernando Meirelles
AS BIG PHARMAS JÁ ESTAVAM NA BERLINDA!
Dia desses, enquanto vasculhava a programação da TV por assinatura, deparei-me com o filme O Jardineiro Fiel, dirigido em 2005 por Fernando Meirelles. Atinei que havia assistido a esse filme uma única vez, à época do seu lançamento. Lembrava da trama e dos seus personagens, mas os detalhes narrativos já haviam me escapado. Que grande oportunidade! Revisitar um filme de qualidade e experimentar a mesma sensação de frescor do primeiro encontro é uma dádiva! Apertei o play e, lá pelo segundo ato, levei um susto!– É sério? Quinze anos antes da epidemia do COVID19? – exclamei depois de fazer as contas.
Naquela época o filme já denunciava as tramoias entre a indústria farmacêutica e agentes estatais corruptos, para vender quantidades planetárias de vacinas e medicamentos sem um controle seguro dos seus efeitos colaterais e com margens de lucro obscenas. Com tamanho potencial explosivo, a história ganhou uma aura de atualidade, que ressaltou a atmosfera de thriller e tornou o drama dos protagonistas ainda mais envolvente. Caso o leitor ainda não tenha recordado a sinopse, vale a pena destrinchá-la:
O Jardineiro Fiel conta a história do diplomata Justin Quayle (Ralph Fiennes), que trabalha na embaixada britânica em Nairóbi, no Quênia. Reservado e compenetrado em seus afazeres, ele recebe do seu colega, Sandy (Danny Huston), uma trágica noticia: sua mulher, Tessa (Rachel Weisz), ativista dedicada a questões humanitárias, foi assassinada durante uma viagem pelo deserto. Será por meio de flashbacks que conheceremos o romance entre o diplomata aficionado por jardinagem e sua bela esposa desinteressada em posar de fiel, mas desinibida na hora de expressar suas convicções ideológicas e políticas. E será por meio de uma narrativa direta que veremos Justin investigar a morte da esposa, a partir da angustiante suspeita de que ela o traia com Arnold Bluhm (Hubert Koundé), um médico queniano.
O que descobriremos junto com o protagonista será estarrecedor. Tessa foi morta porque desvendou um crime cometido por executivos de uma renomada empresa farmacêutica. A pretexto de conter a epidemia de AIDS, distribuíam medicamentos grátis para os quenianos. Porém, com a conivência do governo corrupto, na verdade testavam um novo medicamento contra a tuberculose, enquanto manipulavam os resultados para ocultar seus terríveis efeitos colaterais. E a impulsiva Tessa foi mais longe: encontrou provas do envolvimento da diplomacia britânica nessa gananciosa e desumana maracutaia. Ao seguir as pistas deixadas por sua esposa, o protagonista se mete numa arriscada trama, que poderá custar sua vida.
Essa história explosiva e atual foi publicada em 2001 no livro O Jardineiro Fiel, escrito por John le Carré, autor britânico naturalizado irlandês, famoso por seus romances de espionagem. Vários deles foram adaptados para o cinema, como O Espião Que Saiu do Frio, O Espião que Sabia Demais, O Alfaiate do Panamá, A Casa da Rússia e Nosso Fiel Traidor . Em O Jardineiro Fiel John le Carré nos traz um drama temperado com romance, sexo, mentiras e... política! No entanto, não parecia interessado em escrever um thriller pontuado com ação e suspense. Seu foco foi todo para a denúncia dos desmandos impetrados nos países pobres do continente africano pelas big pharmas britânicas, assunto sobre o qual pesquisou a fundo.
O escolhido para escrever a adaptação para o cinema foi Jeffrey Caine, que havia escrito o roteiro de 007 Contra Goldeneye. Sintonizado emocionalmente com o drama dos protagonistas – havia perdido a esposa em 1995 – o roteirista conquistou a confiança de John le Carré. Propôs manter a estrutura não linear do romance, mas eliminou a parte em que policiais britânicos investigam a morte de Tessa, o que anteciparia para o espectador a existência de uma tramoia política. Ao invés disso, colocou o próprio protagonista para desvendar a trama. Isso resgatou a vocação de thriller da história e a deixou mais atraente para as telas.
Quando o diretor brasileiro Fernando Meirelles ingressou no projeto, credenciado pelo estrondoso sucesso de Cidade de Deus, trouxe consigo uma visão mais urgente e pragmática do tema. Gostou da ideia de ter a indústria farmacêutica como vilã do filme, já que ela mostra múltiplas facetas: ao mesmo tempo em que o setor contribui para melhorar a vida das pessoas, com produtos capazes de salvar vidas e garantir bem-estar, seus executivos podem ser contaminados pela ganância e atrair os corruptos sentados sobre o dinheiro público destinado ao setor da saúde.
Apesar das dificuldades, Meirelles conseguiu fazer com que o filme fosse rodado em locações no Quênia. Os produtores penaram até conseguir autorização dos governantes, já que eles eram retratados como meros corruptos. O resultado foi compensador. O Jardineiro Fiel transborda autenticidade e mostra todo o virtuosismo do diretor, neste que foi seu primeiro filme falado em inglês. Recebeu indicações para os Óscares de melhor roteiro adaptado, melhor montagem e melhor trilha sonora original. E saiu da festa com a estatueta de melhor atriz coadjuvante, para Rachel Weisz!
Com uma fotografia belíssima, atuações marcantes e uma trama envolvente, O Jardineiro Fiel é um filme inteligente e pertinente. Nos obriga a fazer reflexões e nos emociona com o drama autêntico de protagonistas verossímeis. Vale a pena ser revisitado. E se você já não se lembra dos detalhes, tanto melhor. Aproveite e se surpreenda outra vez.
Resenha crítica do filme O Jardineiro Fiel
Título original: The Constant GardenerAno de produção: 2005
Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: Jeffrey Caine
Elenco: Ralph Fiennes, Rachel Weisz, Daniele Harford, Danny Huston, Bill Nighy, Hubert Koundé, Richard McCabe, Gerard McSorley, Pete Postlethwaite, Anneke Kim Sarnau, Jason Thornton e John Keogh
Eu já assisti e gostei mas vocé me instigou e vou assistí-lo novamente. Obrigada pela sua crônica. Excelente.
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