Amnésia: sem memória recente, não há realidade
Amnésia: direção de Christopher Nolan
DELÍRIOS SOBRE FOTOS, ANOTAÇÕES E TATUAGENS
Sabe quem está enfrentando problemas para lidar com memórias recentes? O mundo! Ao deixarmos embolorar as páginas da história, só conseguimos ler aquelas escritas há pouco. Ontém, enxergávamos as de uma década. Antes disso, as de 50 anos, um século, duzentos anos... Atualmente, parece que só as dos últimos cinco anos são legíveis. Quer um exemplo? Vou dar um muito bobo, mas simbólico. Quando era rapaz, adorava ouvir rock e fingir que tocava a guitarra na hora do solo. Fazia caras e bocas e me divertia. Chamava isso de... fingir que estava tocando guitarra. Os jovens que me sucederam batizaram a prática de Air Guitar – chegaram a criar concursos e campeonatos mundiais da modalidade! Os jovens que sucederam a esses jovens, se esqueceram desse nome criativo. Outro dia tropecei num post na rede social, onde um deles dizia gostar de... fingir que está tocando guitarra na hora do solo! O que foi que aconteceu com a tal de Air Guitar? Parece que a geração em vigor segue com o firme propósito de manter o mundo como uma tábua rasa, como uma tela em branco para ser lambuzada unicamente com suas tintas preferidas.Distúrbios de memória são avassaladores e rendem boas histórias. Por isso, protagonistas com amnésia retrógada já lotaram as telas de cinema. Os que sofrem de amnésia anterógrada, porém, são mais raros – na maioria portadores do Mal de Alzheimer e outras demências senis, que aparecem em filmes como o excelente Meu Pai, estrelado por Anthony Hopkins. Lá aprendemos que, sem os registros do aqui e agora, perdemos a noção da realidade e nos debatemos nas águas turbulentas da insanidade. Sem a memória recente, o fio narrativo que maçaroca o nosso viver desaparece. Ficamos à deriva!
O filme Amnésia, dirigido em 2000 por Christopher Nolan é feito justamente desse material volátil, mas é um thriller noir com boas doses de suspense. Ele nos conta a história de Leonard Shelby (Guy Pearce), um investigador de seguros vitimado por um trauma violento – o estupro e o assassinato brutal da esposa. A partir de então, ele não consegue criar novas lembranças. Tudo o que lhe acontece no agora é esquecido nos próximos dez minutos e poderá se repetir como novidade. Suas memórias anteriores ao trauma, no entanto, permanecem intactas. Seu desejo de vingança está vívido e suas habilidades investigativas o impelem a localizar o assassino identificado como John Edward Gammell e matá-lo. No percurso, Leonard vai se deparar com personagens nada confiáveis, como a misteriosa Natalie (Carrie-Anne Moss) e o suspeito Teddy (Joe Pantoliano), que eventualmente manipulam os fatos. O único jeito de se precaver é tirar fotos, fazer anotações e tatuar mensagens para si mesmo no próprio corpo.
O protagonista de Amnésia está preso numa espécie de looping temporal. A realidade à qual se agarra é aquela que ele já conheceu um dia, mas é sistematicamente tragada pelo mar de incertezas que o inunda de dez em dez minutos. Tudo o que tem são os suvenires que carrega, colecionados com desespero. Mas antes de analisar a brilhante construção desse filme, vale a pena falar do seu título. O original, Memento, tem em inglês o significado de lembrança ou recordação. Refere-se aos objetos que os viajantes trazem a título de suvenir dos lugares que visitam. Mas é da expressão em latim “memento mori” que vamos extrair o sentido mais contundente. Ela significa “lembre-se de que vai morrer” e funciona como um aviso sobre o fim inevitável de qualquer mortal. Na Roma da antiguidade, era usada como alerta aos heróis que voltavam ilesos das batalhas, para evitar que a arrogância lhes inflasse o ego, já que terminariam levados pela morte como qualquer um. Memento Mori, aliás, é o título do conto escrito por Jonathan Nolan, irmão do diretor, no qual o filme foi baseado.
Amnésia é o segundo longa-metragem de Christopher Nolan, realizado com baixo orçamento e espírito de cinema independente. O roteiro inovador foi costurado com maestria, para manter o espectador enclausurado na mente do protagonista. O que vemos é um quebra-cabeça montado diante dos nossos olhos, a partir de duas linhas narrativas distintas: uma em preto-e-branco, que oferece alguma base cronológica, e outra filmada em cores, com sequências apresentadas em ordem aparentemente aleatória. Ao final do filme as duas linhas narrativas se cruzam e dão sentido à história.
Tudo isso cobra um certo esforço do espectador, que precisa questionar as ações de todos os personagens, suas motivações e verdadeiras intensões. E como acontece em todo filme noir, as idas e vindas alteram as perspectivas acerca de quem é o bandido, quem é o mocinho e para quem devemos torcer. Drama, suspense, tensão, humor... Há um pouco de tudo em Amnésia. Os cinéfilos interessados em cinema de qualidade se sentirão recompensados.
O filme de Christopher Nolan seguiu as trilhas apressadas do cinema e se materializou antes que seu irmão publicasse seu conto. Como resultado, as duas peças guardaram diferenças. O texto de Jonatham mergulha mais profundamente no universo psiquiátrico e na mente do protagonista. As cenas criadas pelo diretor, sempre plásticas e provocativas, contaram com o trabalho compenetrado do ator Guy Pearce e com a presença carismática de Carrie-Anne Moss e Joe Pantoliano – que ainda estavam frescos na memória do público por suas atuações em Matrix.
Amnésia é empolgante, mas é daqueles filmes que precisam ser revisitados. É fatal que alguns detalhes nos escapem na primeira vez, especialmente no conforto de casa, onde as distrações são mais numerosas. Da última vez em que o revisitei, terminei convencido de que os transtornos da memória recente afetam não só os indivíduos, mas sociedades inteiras, que se esquecem de olhar para o passado por pura... preguiça!
Resenha crítica do filme Amnésia
Título original: MementoAno de produção: 2000
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan e Jonathan Nolan
Elenco: Guy Pearce, Carrie-Anne Moss, Joe Pantoliano, Mark Boone Junior, Russ Fega, Jorja Fox, Stephen Tobolowsky, Harriet Sansom Harris, Thomas Lennon, Callum Keith Rennie, Kimberly Campbell, Marianne Muellerleile e Larry Holden
Sua crônica sempre acrescenta ..um luxo ..Parabéns👏👏.Este é um filme original, concordo com o que vc diz neste texto tão bem elaborado, deve ser visto mais de uma vez, pois detalhes ficam confuso na primeira vez. Devo dizer que este filme não é para tds, devido ao enredo muito complexo. Eu simplesmente ameeei o desafio de Memento, muito intrigante, A+!!!
ResponderExcluirAh, muito obrigado. Seu feedback é valioso e me estimula a seguir escrevendo minhas crônicas. De fato, esse filme é desafiador, mas ao desvendá-lo, ficamos recompensados.
ExcluirCom certeza preciso rebisitarceste filme. Sua crônica me incentiva a isso.
ResponderExcluirLegal! Espero que você também continue encontrando inspiração no cinema!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObrigada pela excelente crônica que permite pinceladas quanto ao entedimento de cada um. Minha experiência ao assistir este filme , não trouxe clareza linear , tive que assistir mais de uma vez, e de verdade agora com suas "dicas", com certeza verei novamente!!
ResponderExcluirSim, Priscilla, costumo rever os filmes que gosto, especialmente depois de ter refletido e pesquisado para escrever a crônica.
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