Direto ao Conto - 4
AdvocacIA
São Paulo, 7 de novembro de 2048 – 19h12. João entrou ofegante na sala de embarque e encontrou todas as poltronas ocupadas. Muitos aguardavam de pé. Por sorte, um idoso sentado a poucos metros dele se levantou, pegou a bagagem de mão e saiu apressado. Que sincronia providencial! João não precisou demonstrar afobação nem ser deselegante. Apenas se sentou. Ajeitou a gravata, tirou o celular do bolso e retomou a leitura do seu livro. Tentava parecer despreocupado e entediado, como cabe a todo passageiro calejado de viagens aéreas. Mas logo perdeu a pose: uma mensagem da Estatal de Correios veio para o primeiro plano, como um alerta inoportuno:“João Hermes de Araújo. Cruzamos seus dados de origem e destino e identificamos uma oportunidade de otimização logística. Trata-se de um pacote remetido para o seu endereço, a ser entregue para seu vizinho do apartamento 1612. A remessa chegará às suas mãos por meio de um de nossos drones. O pacote já foi inspecionado pelas autoridades aduaneiras e é seguro. Um crédito relativo ao percentual cabível do valor do frete já foi transferido para a sua conta corrente. Agradecemos a sua colaboração. Seu gesto de boa vontade e cidadania contribui para a redução de custos e para a diminuição dos impactos ambientais em nossas operações de transporte. É muito bom ter você fazendo parte do nosso esforço global por um mundo cada vez melhor!”
– Puta que pariu! – pensou João em voz alta.
A mulher de cabelos coloridos sentada ao seu lado se espantou e lançou um olhar de reprovação. Sua expressão, porém, mudou assim que percebeu a aproximação do drone da Estatal de Correios. Ela esboçou um sorriso sarcástico no canto dos lábios e cuidou de se entreter com o próprio celular.
Silenciosa, a máquina com formato de freezer horizontal entrou na sala de embarque e se arrastou em suas esteiras de borracha. Vinha com o scanner de reconhecimento facial apitando e localizou João com irritante facilidade. O compartimento de carga se abriu e um braço robótico retirou o pacote, devidamente embalado em uma sacola plástica, decorada com a espalhafatosa mensagem promocional da Estatal de Correios. Enquanto pegava a sacola, João ainda teve que ouvir a voz pastosa emitida pelos autofalantes do drone:
– Muito obrigado pelo seu gesto de boa vontade e cidadania! É muito bom ter você fazendo parte do nosso esforço global por um mundo cada vez melhor!
João colocou a sacola sobre os joelhos e olhou em volta. Estavam todos atracados aos seus celulares, com pose de despreocupados e entediados, como cabe a passageiros calejados de viagens aéreas. Mas a mulher de cabelos coloridos ao seu lado não resistiu:
– Até que o pacote é pequeno. Outro dia tive que carregar uma panela de pipoca! A embalagem era... desse tamanho! – E fez o gesto com as duas mãos!
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São Paulo, 7 de novembro de 2048 – 20h45. O voo com destino a Curitiba saiu com 15 minutos de atraso. A bordo, enquanto comia uma barrinha de cereal e tomava refrigerante, João se fez mais uma vez a velha pergunta recorrente: por que diabos a porra desse governo ainda não investiu na implantação de um trem de alta velocidade para ligar São Paulo e Curitiba?
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Curitiba, 7 de novembro de 2048 – 22h08. João tocou a campainha do 1612 pela segunda vez. Pensou em desistir – deixaria o pacote na portaria do prédio. Mas a porta se entreabriu e a vizinha, uma loira esfuziante embrulhada num roupão, apareceu pela fresta e demonstrou surpresa.
– Fui fisgado no aeroporto – avisou João, erguendo o braço que segurava a sacola da Estatal de Correios.
– Ah! Sim... Recebi a mensagem.
A vizinha abriu a porta e tratou de pegar a sacola, mas João também foi ligeiro:
– Você se importa de resolver isso agora? Você sabe...
– Claro! Vou pegar o celular.
Enquanto a vizinha procurava o aparelho, João aproveitou para espiar o interior do apartamento. Era mais bagunçado que o seu. Ela voltou, dedilhou na telinha do aplicativo e deu a operação como concluída.
– Pronto! Dei cinco estrelas!
João não disfarçou o mau humor. Despediu-se com um aceno. Não dava a mínima para as tais estrelas e estava por demais cansado para reagir à sensualidade clichê irradiada pela loira esfuziante. Sua ansiedade era para chegar em casa de uma vez por todas e esquecer a jornada cansativa que vivera em São Paulo.
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Curitiba, 7 de novembro de 2048 – 22h16. João entrou em casa e largou a bolsa em cima da mesa. Tirou o paletó e o pendurou no encosto da cadeira. Afrouxou a gravata, esvaziou os bolsos e foi direto para o quarto. Ana já dormia. Ele se sentou na beirada da cama e ensaiou um gesto romântico.
– Oi, amor. Cheguei.
Ana se espreguiçou felinamente, num gesto lânguido que durou poucos segundos. Assim que despertou por completo ela se ergueu num sobressalto.
– Porra, João! Até que enfim! Você viu a merda que aconteceu?
– Do que você tá falando?
– De merda! Merda de verdade! Estourou um cano de esgoto no prédio. O primeiro e o segundo andar ficaram inundados de merda. Chamaram um batalhão de encanadores e descobriram que algum idiota jogou areia de gato no vaso sanitário. Entupiu tudo!
– Mas que bosta, hem!
– É sério, João. O síndico ligou aqui e disse que a culpa é nossa.
– Como assim?
– Disse que fizeram uma perícia e confirmaram: a areia só pode ter saído do nosso apartamento. Vamos ter que pagar todas as despesas com o conserto.
– Mas a gente nem tem gato!
– Foi o que eu disse! Só que ele não quis nem saber. Avisou que já acionou o tribunal de pequenas causas e o processo tá correndo.
– Puta que pariu!
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Curitiba, 7 de novembro de 2048 – 23h05. Sentado no sofá, João finalmente localizou o e-mail do tribunal de pequenas causas. Ordenou à TV que abrisse o canal de acesso. Ana chegou com a caneca de café expresso justamente no momento em que a imagem da atendente digital tomava a tela:
“João Hermes de Araújo. Há um processo aberto, de número 209.098.678-0002/48, em tramitação agilizada. O prazo para pronunciamento do veredito expira em... 56 minutos. Os inputs da acusação já foram recebidos, processados e analisados. Os inputs da defesa ainda estão pendentes. Este tribunal de pequenas causas está em operação, aguardando as informações, que devem ser fornecidas exclusivamente pelo seu advogado digital. Alguma dúvida? Posso ajudá-lo?
João jamais se sentiu confortável ao conversar com entidades digitais. Deu um gole demorado no café expresso, o que deixou Ana injuriada.
– Porra, João! O tempo tá correndo!
Em meio àquela confusão, João não estava interessado em lidar com a ansiedade da namorada. A encarou com a expressão gélida que costumava assumir sempre que se sentia pressionado. Por sorte, Ana também não estava para discussões. Voltou para o quarto e esbravejou sobre não estar nem aí, já que era João o dono do apartamento... Ele que continuasse com a teimosia de fazer tudo do seu próprio jeito e não viesse chorar depois nos seus ombros...
João deu outro gole demorado no café expresso e balbuciou para a TV:
– Eu não tenho advogado!
“Entendi! Isso não é problema”, respondeu a atendente digital. E continuou: “Aqui estão os links de cinco serviços de advocacia digital. Fique à vontade para escolher o mais adequado aos seus interesses. Qualquer um deles está capacitado a dar resolução à sua causa. Posso ajudar em algo mais?”
João, que jamais se sentiu confortável ao conversar com entidades digitais, preferiu não responder. Simplesmente encerrou a audiência.
O que fez em seguida foi clicar no link do serviço intitulado AdvocacIA – gostou do trocadilho com a abreviatura de Inteligência Artificial no final do nome.
“Olá! Que bom receber a sua visita aqui na AdvocacIA”, disse sorridente a advogada digital que ocupou toda a tela da TV na sala de estar de João. “Deseja conhecer um pouco mais sobre a nossa prestação de serviços? Ou, se preferir, podemos ir direto à questão prática que motivou seu contato”.
João gostava de objetividade! Seu mundo hiperconectado era apressado e cobrava um fôlego de atleta de todos os viventes, mas ao menos oferecia uma sensação de ganho de tempo! O rapaz foi rápido em explicar seu problema:
– Tem um processo correndo no tribunal de pequenas causas. O número é 209.098.678-0002/48.
“Ah, só um instante... Sim... Já estou acessando os dados... Ok, já tenho todo o entendimento do processo. Senhor João Hermes de Araújo, trata-se de uma ação de danos. Há um laudo anexado, comprovando que a causa se originou no seu apartamento. Deseja contestar a ação, ou fechar um acordo para pagamento facilitado?”
– Contestar! Não tenho gatos. Ninguém aqui em casa jogou areia de gato no vaso sanitário.
“Ok... entendi. Vou encaminhar uma apelação nesse sentido”.
João deu outro gole no seu café expresso. Foi o tempo necessário para que a advogada digital retomasse a conversa:
“Infelizmente, o tribunal indeferiu a petição. A acusação anexou provas ao processo que desmentem sua alegação”.
João arregalou os olhos quando viu a tela da sua TV ser tomada por uma sequência de fotografias tiradas no seu apartamento. Elas mostravam um gato andando despreocupado pela casa toda. Em uma das fotos, inclusive, o felino aparecia no seu colo. Em outra, quem segurava o bichano era Ana. João se lembrava bem do dia em que a namorada postara as fotos nas redes sociais.
– Mas esse é o gato da minha prima! Ela o trouxe uma vez, há alguns meses. Ficou hospedada aqui em casa por apenas uma noite!
“A recomendação da AdvicacIA é no sentido de fechar um acordo para pagamento facilitado do valor da ação. Posteriormente poderemos sugerir duas ou três linhas de defesa, caso o senhor esteja realmente interessado em recorrer da sentença.”
– Mas... o tribunal já chegou a uma sentença?
“Há a possibilidade de novas apelações, entretanto, dada a robustez das provas apresentadas, recomendamos não insistir na causa”.
João espumou de raiva:
– Tá legal, quero a intervenção de um advogado humano!
“Não há tempo hábil para tanto, senhor João Hermes de Araújo. O veredito será pronunciado em poucos minutos e advogados humanos não estão aptos a lidar com as tramitações no tribunal de pequenas causas. Alcançar o entendimento do processo e elaborar estratégias de defesa em tão curto espaço de tempo exige a intervenção de algoritmos especializados. Além do mais, o elemento humano traria variáveis não cartesianas ao caso, possibilidade que só está prevista em instâncias superiores. As conquistas do sistema judiciário digital quanto à imparcialidade, precisão na análise dos inputs e acesso instantâneo de toda a jurisprudência garantem que a justiça seja feita em um nível sem precedentes. Portanto, a recomendação da AdvicacIA é no sentido de fechar um acordo para pagamento facilitado do valor da ação”.
João murchou no sofá. Sua xícara de café expresso estava vazia. Suspirou longamente a sua decepção e, depois de conferir as horas no celular, arrematou:
- Tá legal! Qual será o valor?
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Curitiba, 8 de novembro de 2048 – 07h35. João chegou na academia preocupado com o horário. Tinha uma reunião logo mais, às 10h. Sentia-se exausto, mas foi direto para uma das poucas esteiras que ainda estavam vagas e iniciou a caminhada. Enquanto aquecia, examinou o aplicativo do celular para conferir o treino que havia sido programado. O algoritmo levou tudo em consideração: o almoço desbalanceado do dia anterior, o lanche à base de carboidratos no aeroporto, o adiantado da hora quando foi dormir, o sono interrompido para uma ida ao banheiro e depois para examinar a movimentação nas redes sociais... Era só seguir exatamente os pesos e as repetições indicadas para cada exercício, que tudo ficaria bem.
Muito bom!
ResponderExcluirValeu!!
ExcluirVida de hoje muito bem retratada. Se a intenção de toda modernidade era facilitar, alguma coisa saiu às avessas e só complicou. Gostei muito. Eu já sabia que você é bom com a palavra escrita! Abraço!
ResponderExcluirMuito obrigado, Vera!! Os algoritmos estão deixando uma sensação incômoda de alienação. Talvez volte a esse tema em outros contos
ExcluirÓtimo! Gosto de tudo q vc escreve! Se Esta substituição de pessoas por digitais ja está difícil de encarar imagine daqui a 20 anos !
ResponderExcluirMuito obrigado. Seu comentário é um estímulo para seguir escrevendo!!!!
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