Direto ao Conto - 5
ESPAÇO-TEMPO
O movimento era normal para uma quinta-feira. Pelo adiantado da hora – passado das três – só o que se ouvia eram as canções despudoramente românticas, bem ao gosto dos três casais que insistiam em balançar agarradinhos na minúscula pista de dança. Pelas mesas, os pares eram formados por clientes habituais e garotas de programa, dissolvidos na penumbra enevoada, banhada por uma frouxa luz avermelhada. Renato e Joanes dividiam a mesa mais discreta, num dos cantos com visão privilegiada para todo o interior do estabelecimento. Por certo não eram um casal. Estavam mais para uma dupla, não de cantores sertanejos, mas de comparsas.– Você acredita em vida depois da morte? – disparou Joanes, mantendo o olhar fixo em algum ponto que apenas ele era capaz de enxergar.
– Sim, acredito. – Antes de continuar, Renato balançou as pedras de gelo no seu copo de uísque e sorveu o último gole. – A alma independe do corpo para continuar sendo o que é. Segue existindo, mesmo depois que o corpo se extingue. Assim como se apegou a ele no momento da concepção, agora apenas se desapega.
– E vai pra onde? – Joanes abriu um sorriso provocador no canto dos lábios.
– Quem pode dizer? Sei lá... Volta pro lugar de onde veio.
– É isso que me intriga, Renato. As almas têm um lugar próprio. Um diferente desse aqui, que é construído com tijolos de realidade e que nós explicamos por meio das forças físicas e suas relações. Mas o lugar das almas é diferente. Não conseguimos avistar. É um lugar... intangível.
– Outra dimensão?
– Sabia que você acabaria pronunciando essa palavra! – O sorriso provocador de Joanes virou gesto de quem ri por último. Com animação renovada, pegou a garrafa e serviu para o comparsa mais uma dose. Depois, enquanto despejava no próprio copo as últimas gotas de uísque, seguiu desenvolvendo seu ponto de vista – Você sabe muito bem, meu caro, que o significado de dimensão está atrelado ao conceito de espaço-tempo, essa entidade quadridimensional na qual nadamos feito moluscos, submersos em nossas próprias percepções, enquanto damos de braçada nas raias do empirismo. Acrescentar mais dimensões não muda o conceito: ficaríamos com um espaço-tempo pentadimensional, hexadimensional, heptadimensional...
– Entendo. As almas estariam vagando por aí de acordo com coordenadas espaciotemporais calculáveis em nosso mundo material. Então... Você acha que elas não compartilham esse nosso contínuo espaço-tempo?
– Por certo que não! O limbo que elas habitam é de natureza etérea. Espiritual! – Joanes acendeu um cigarro e deixou que a fumaça se espalhasse sinuosa, enquanto escolhia as palavras. – Deve ser algum tipo de ambiente mais apropriado para conter as coisas imateriais. Coisas que não existem, mas são. Deve ser um lugar sem existência física, que não pode ser medido, não pode ser acessado, não poder ser ocupado...
Renato levantou o dedo e gesticulou para a garçonete. Pediu mais uma garrafa. A moça foi rápida. Não queria confusão. Tratou de completar os copos dos dois carrancudos e quando já se preparava para sair com a garrafa vazia, foi segurada pelo braço com firmeza:
– Você acredita em Deus, Sheila? – perguntou Renato, a olhando nos olhos.
– Claro!
– E como ele é? Barbudo? Vestindo uma bata branca? Cara de monge budista?
– Claro que não! Ele é tipo... uma energia!
– Uma energia? 110 ou 220?
– Caralho! Essa parada de vocês tá eletrizante, hem! – Sheila sorriu amarelo. Não estava com paciência para aturar conversa de bêbados. Encarou o casca-grossa, até que ele finalmente a soltou. Ela se apressou a percorrer as outras mesas, enquanto Renato, sem desgrudar os olhos, seguiu admirando a sua... desenvoltura.
– Viu só, Joanes? Ela já tem tudo resolvido. É questão de energia!
– Energia! Outra palavrinha sem-vergonha! Vem fácil na boca de quem tenta nominar algo que não compreende, mas sabe que existe, porque lhe arrepia os cabelinhos do braço e provoca contrações involuntárias na espinha. O problema é que poucos se lembram de que energia e matéria são a mesmíssima coisa, quando submetida ao quadrado da velocidade da luz.
– E=mc2.
– Pois é, Renato! As pessoas falam em energia para se referir ao imaterial, mas continuam prisioneiras do material.
– Então... Não podemos falar em dimensão, nem em energia. – Dessa vez foi Renato quem resolveu acender um cigarro. Demorou duas tragadas para engatar as ideias. – Será que esse lugar das almas calha de ser aquele mesmo do tal ovo primordial, que resultou no big-bang e deu origem ao universo?
– Acho que não!
– Posso saber por que?
Joanes não gostava de posar de sabido. Sabia o tamanho da própria ignorância. Além disso, quando o assunto era cosmologia, considerava-se não mais que um mero curioso, consumidor de leituras amenas, sem outra serventia senão a de proporcionar passatempo. Porém, era atrevido o suficiente para tirar suas próprias conclusões. É claro que jamais exporia seus postulados para outros que não houvessem compartilhado com ele pelo menos uma garrafa de uísque. O resto da humanidade que tateasse na escuridão. Seu comparsa de tantas desventuras, entretanto, merecia consideração:
– Acompanhe meu raciocínio, Renato. Antes do big-bang não havia espaço-tempo. Ele só passou a existir no ínfimo instante depois. E veio para separar as coisas. Você já se deu conta de que o espaço-tempo é aquilo que nos separa? Quero dizer... Você está aí e eu estou aqui. Você está contido em um naco de espaço-tempo, enquanto estou contido no meu. Entre mim e você há um outro tanto de espaço-tempo, que nos distancia. Se não tivesse espaço-tempo, não seríamos você e eu. Não seríamos indivíduos. Seríamos tudo e todos.
– Como antes do big-bang!
– Isso mesmo! Podemos pensar que antes não havia nada, mas é justamente o contrário! O que havia era a totalidade do mundo físico, ocupando um único ponto. Era uma unidade, constituída sem partes individuais. Então, Renato, se a alma volta para o lugar de onde veio, não é para antes do big-bang, onde deixaria de ser indivíduo para fazer parte do todo. Se assim fosse, ela deixaria de existir como alma.
– Que bosta, Joanes! Que sentido teria em se tornar alma, enroscar-se em um corpo físico, viver, sentir, sofrer, amar, existir e depois da morte simplesmente se anular, voltando a fazer parte de uma totalidade amorfa, descaracterizada, esmagadora...
– Nenhum sentido, Renato! Penso como você. Não se trataria nem mesmo de fazer parte de um coletivo, já que tal noção não caberia no conceito de totalidade. Seria a mesma coisa que deixar de existir. Portanto, para que a alma continue existindo, só há uma possibilidade: permanecer como um indivíduo. Tem que estar separada das outras almas, por nacos de espaço-tempo. – Joanes apagou o cigarro no cinzeiro antes de concluir: – Ou coisa que o valha!
Renato admirava a esperteza de Joanes. Gostava de ser instigado por sua inteligência e se sentia vitorioso quando conseguia acompanhar o raciocínio do comparsa. Mas não nutria o mesmo interesse por cosmologia. Preferia enfrentar as questões mais importantes da vida com um certo desprendimento... pós-moderno. Resignava-se com o fato de só poder conhecer o fenomênico e não gostava de tirar conclusões metafísicas no apressado dos embates. Mas também gostava de mandar às favas a empáfia da razão pura e dar vazão aos seus impulsos românticos. Abriu um sorriso maroto e provocou:
– Já sei! Deve ter havido algum tipo de big-bang de almas!
– Tá certo, Renato! Também acho que essa conversa já foi longe demais!
Os dois brindaram e entornaram a última rodada. Passava das três e meia, mas o senso de responsabilidade continuava no controle. Tinham um trabalho a executar. Os dois se levantaram ameaçadores e seguiram na direção do balcão, onde Kleber já os esperava com as contas feitas. Meticuloso, Joanes conferiu item por item. Fez as contas de cabeça, tirou a carteira do bolso traseiro da calça e apresentou a metade do dinheiro. Renato espiou o valor anotado e fez o mesmo. Deixou a sua parte em cima do balcão.
- x –
Dentro do carro, no banco do carona, Joanes inspecionava seu revolver com o costumeiro zelo. Ao volante, Renato mantinha o olhar distante. Estava encafifado:
– Será que nesse lugar das almas vamos nos encontrar com todas elas? Com cada uma delas?
– Pensei que você tinha perdido as contas.
– Esse nosso ramo é uma ciência exata, Joanes.
A estradinha de mão dupla, deserta naquelas escuridões silenciosas, só se revelava conforme os faróis do carro varriam o asfalto. Carro e estrada lembravam os elementos de um teorema newtoniano.
Gostei.
ResponderExcluirDiscussões filosófica, cosmologicas, astrológicas, misturadas com metafísica.
Tudo normal para qualquer mente perturbada e alcoolizada na madrugada em um bar de periferia.
Ah, as coisas que podemos entreouvir nas mesas dos bares! Algumas das conversas não são filosóficas, muitas nem chegariam a motivar um contista, mas todas elas são reveladoras dos personagens que as travam.
ExcluirOdlanra
ResponderExcluirEsse seu Conto fez-me viajar para o ano de 1971 quando discutia com o amigo Zezinho (não aquele dos Huguinho e Luizinho) e nos perdíamos como ginasianos querendo entender como se dá a vida, a morte e tudo mais. E Zezinho, sempre mais esperto, tecia explicações escalafobeticas quase como num poema pra dizer: "olhei sempre o que nada era, toquei o que não tinha substância e dentro do que não existiu... estou".
Olhava pra ele e respondia: você tá sendo no mínimo ateu com essa heresia e desciamos a escadaria defronte a Igreja matriz em direção às nossas casas; sabendo que o pároco local estava nos observando e maneando a cabeça como a dizer: esse dois não sabem o que estão dizendo ou só o dizem para irritar-me... é isso, por isso que falam tão alto que é para ouvi-los.
E ríamos além da conta!
Gostei disso, se bem que, focou vários temas quando poderia ter-se dedicado a apenas um tópico do que está enumerado.
Assim como você, fui buscar inspiração nos compartimentos da memória, mas botei as palavras nas bocas de personagens inventados. Não consegui disfarçar que, na verdade, todo esse atropelo de ideias brotou na minha própria mente. Não consegui me conter!
ExcluirQue conto legal, caro Fabio!! Parabéns.
ResponderExcluirAh, muito obrigado, Jane! Legal ter você lendo também os meus contos. Valeu!
ExcluirA licença da ficção, muitas vezes, é a benção do escritor. O texto é muito bem escrito - já a acumulação de conceitos é excessiva no espaço "tempo-linhas a se ler"... - os seres filosofantes do underground são um paradoxo bacana... até charmoso pela falta de probabilidade de realmente existirem. Quando li sua crônica pensei em desdobramentos... como vc poderia fazer uma série de diálogos dos jagunços existencialistas, por temas, em situações que houvesse um gatilho pra discutir algo como "efemeridade" - "existência imaterial" - "eu como partícula do universo"... o sarcasmo da Sheila ao responder a provocação ficou forçado, achei... por isso, minha leitura acabou sendo de que vc estava ansioso por adensar conceitos numa crônica só... ou seja, o escritor acabou puxando o holofote pra si, o que é bem interessante, porque a narrativa mostrou um desejo de criar dialética do cronista... parabéns por se expor e nos desafiar à crítica e leitura.
ResponderExcluirAh, Elmo, sou grato por sua generosidade em oferecer um comentário tão pertinente. Sim, os jagunços pensadores nasceram da necessidade de criar um certo charme, já que o assunto poderia se tornar chato para o leitor médio. Nada muito original, reconheço, mas serviu ao meu propósito de dar vazão ao impulso de escrever. E você foi direto ao ponto: todos os personagens - inclusive a sarcástica Sheila - habitam a minha alma noturna, vagando pelos meus sonhos como partes de mim acotoveladas na estrutura da minha psique. Sinceramente, não sei se consigo escrever de outra forma, mas a sua intervenção me anima a seguir tentando. Além disso, você me alertou para o vício que trago do ofício de publicitário: escrever para o leitor médio! Preciso parar com isso. O leitor médio que se foda!!! Daqui em diante só escrevo para os leitores atentos e habituados ao exercício da fruição. Só vou escrever para os Elmos! Mais uma vez, muito obrigado por sua generosidade. Abraço!
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