Era Uma Vez um Sonho: a história do vice de Donald Trump
Era uma Vez um Sonho: direção de Ron Howard
UM LAMENTO CAIPIRA
Isso mesmo, leitor. O protagonista de Era uma Vez um Sonho, filme dirigido em 2020 por Ron Howard, é o mesmo J. D. Vance que se tornou vice-presidente na chapa de Donald Trump, na corrida de 2024 à Casa Branca. Personagem da cena política americana embrulhado em polêmicas e controvérsias, a simples menção do seu nome é suficiente para dissolver a isenção dos cinéfilos mais engajados. Uns torcerão o nariz e gritarão que o filme é ruim. Outros erguerão o punho, para garantir que é cinema de qualidade.Antes de escrever sobre esse filme – para evitar os veredictos prévios decididos com o fígado – será mais prudente examinar quem é esse tal de J. D. Vance e entender a sua trajetória. Ele ficou famoso de repente, em 2016, quando publicou seu livro de memórias intitulado Hillbilly Elegy: A Memoir of Family and Culture in Crisis. Foi um grande e inesperado sucesso editorial! Além de contar a história de como cresceu no seio de uma família pobre e problemática em Middletown, no estado de Ohio, ele se atreveu a refletir sobre a realidade dos americanos brancos da classe trabalhadora e suas mazelas políticas e sociais. Foi tudo no calor das eleições que culminaram na vitória de Donald Trump e serviram para alvoroçar tanto os democratas como os republicanos.
No inglês, a palavra Hillbilly significa “caipira”. Elegy, por sua vez, é traduzida como "elegia" – aquele tipo de poema lírico em tom de tristeza, que remonta aos gregos e é formado por versos com métrica rigorosa. Para resgatar o sentido poético do título, prefiro usar “Lamento Caipira” como tradução – pretendo alcançar assim uma certa... musicalidade. No final das contas, é disso que se trata: do universo caipira que habita o tal Cinturão da Ferrugem – antes era conhecido como Cinturão do Aço, mas terminou corroído de desindustrialização e pobreza.
Embora Vance avise que sua história é bastante comum, ela tem algo de notável. Ele cresceu na pobreza e amargou maus momentos com a família disfuncional, mas conseguiu escapar do futuro sombrio que o espreitava. Seus avós, deseducados, rudes, violentos e desesperançados, migraram do Kentucky e jamais encontraram prosperidade. Sua mãe, viciada em drogas, colecionava namorados e surtos psicóticos. Incentivado pela avó, estudou, entrou para a Marinha e depois conseguiu se formar em direito pela prestigiada Yale University. Seus méritos são inquestionáveis.
Vance aproveita sua história familiar para escrever sobre o sonho americano – aquele de alcançar um futuro melhor para os filhos e netos a partir do trabalho duro – e contabiliza o alto preço que ele cobra dos que encontram imensas barreiras à mobilidade social. Também aproveita para refletir sobre as causas culturais que condenam os brancos pobres a um perverso ciclo de misérias. Chegou a descrever os habitantes dos Apalaches – a cordilheira que abastece as siderúrgicas dos Estados Unidos – como preguiçosos. E tornou-se uma espécie de porta-voz dos brancos da classe trabalhadora, ao criticar as políticas públicas, a globalização, a depreciação da classe média e os programas de governo criados para proteger os pobres, mas que só conseguem perpetuá-los como tais.
Os conservadores foram os primeiros a comprar o livro de Vance – por certo, atraídos pela história do vencedor que coleciona méritos. Os da esquerda também viraram leitores, principalmente das páginas onde o autor critica a falta de mobilidade social. Foi assim que, ao alcançar todo o espectro político, Hillbilly Elegy lançou J. D. Vance ao estrelato. Sua vida mudou radicalmente. Em 2017 deixou o emprego na Califórnia e voltou para Ohio, onde fundou uma organização sem fins lucrativos para apoiar as comunidades da região. Virou colaborador da CNN e ganhou espaço na mídia, onde passou a discutir sobre políticas públicas. Para se eleger senador em 2022 e agora se tornar vice de Trump, foi um pulo!
É claro que essa história tinha que virar filme! Hollywood não perderia a chance de aproveitar o calor da próxima corrida eleitoral para lançar uma adaptação que, provavelmente, causaria estrondo semelhante ao de 2016. Mas a expectativa não vingou! O filme de Ron Howard chegou em 2020 sem o subtítulo que aludia às questões políticas e sociais e ficou apenas com o Hillbilly Elegy. No Brasil, os distribuidores bem que tentaram dar uma certa conotação política para a esquerda: Era uma Vez um Sonho parece gritar que a América decadente já não tem mais salvação!
Então, finalmente, vamos falar de cinema! O diretor Ron Howard já nos presenteou com entretenimento de qualidade. Realizou filmes como Uma Mente Brilhante, Rush - No Limite da Emoção, O Preço de Um Resgate e A Luta pela Esperança. Depois de adquirir os direitos do livro de Vance – e arregimentá-lo como produtor – ele chamou Vanessa Taylor para escrever o roteiro. O trio discutiu todos os detalhes da adaptação, mais foi a roteirista quem estabeleceu o tratamento final. Experiente – escreveu para séries de TV e foi indicada ao Óscar de melhor roteiro original por A Forma da Água – ela optou por uma narrativa não linear. Intercalou sequências que mostram a infância de Vance e sua vida em Yale, quando precisa retornar a Middletown para intervir por sua mãe.
Como você já percebeu, leitor, o diretor arrancou do filme mais do que o subtítulo que completava o livro. Omitiu todo o discurso político e a abordagem cultural, para concentrar a narrativa no drama familiar de Vance. É claro que com isso ele ressaltou a trajetória do protagonista e enalteceu seus méritos. Mas é preciso que se diga: não apelou para o melodrama nem para o sentimentalismo! O filme termina muito antes que Vance conclua a faculdade, ascenda profissionalmente e decida escrever o livro de memórias que mudaria a sua vida.
O que vemos na tela é a história de um J. D. Vance garoto (Owen Asztalos), que aos 14 anos sofre com os desmandos da mãe, Beverly (Amy Adams), uma enfermeira viciada em drogas sem limites, que além de precisar de ajuda, só o atrapalha. Sua avó, Bonnie (Glenn Close), de quem se espera algum norte, é uma desbocada inculta e violenta, que carrega nos ombros a responsabilidade pelo “futuro” da família. Permeando as memórias de infância, temos um J. D. Vance adulto (Gabriel Basso) que em 2011 chega para ajudar a irmã, Lindsay (Haley Bennett) com a internação da mãe, mas precisa resolver seus laços familiares de uma vez por todas se quiser seguir com sua nova vida.
O roteiro de Vanessa Taylor é bem costurado. Não se perde nas idas e vindas pelos flashbacks e constrói as cenas com objetividade. Deixa que os personagens se revelem. Ron Howard faz o que está acostumado: impõe um ritmo envolvente e posiciona a câmera para nos dar uma visão franca do que tem para nos mostrar. Já o elenco... arrasa! Onde alguns críticos enxergaram caricaturas e desempenhos idiossincrásicos só consegui ver autenticidade e verdade emocional. Magnéticas, Glenn Close e Amy Adams são a potência dramática do filme e nos conduzem pelas mãos, do começo ao fim. Gabriel Basso – já o vimos como um dos garotos cinéfilos no filme Super 8 – convence como um Vance arremessado para a maturidade, mas ainda longe de se tornar o homem de sucesso que agora conhecemos.
Grande parte da crítica negativa a Era uma Vez um Sonho decorre da frustração dos politicamente engajados, que esperavam ver nas telas um J. D. Vance polêmico, a repetir verdades que adorariam rebater. Ao invés disso, encontraram um personagem escancarado, amedrontado, inseguro, emocionalmente debilitado, que não se sabe como, conseguiu sair do ciclo caótico no qual se encontrava, para se agarrar a um raio de esperança enviado por sabe-se lá qual emaranhado de intervenções divinas...
O filme evita o caminho fácil da narrativa inspiradora e edificante. O que vemos é um massacre emocional permanente, verossímil e reconhecível, que nos conduz a uma inevitável pergunta: como foi que um garoto como esse conseguiu sair dessa panela de pressão? E então, o próximo passo é lembrar que agora ele está lá, ao lado de Donald Trump, a ocupar a Casa Branca. Seus méritos são inquestionáveis!
O filme evita o caminho fácil da narrativa inspiradora e edificante. O que vemos é um massacre emocional permanente, verossímil e reconhecível, que nos conduz a uma inevitável pergunta: como foi que um garoto como esse conseguiu sair dessa panela de pressão? E então, o próximo passo é lembrar que agora ele está lá, ao lado de Donald Trump, a ocupar a Casa Branca. Seus méritos são inquestionáveis!
Resenha crítica do filme Era uma Vez um Sonho
Título original: Hillbilly ElegyAno de produção: 2020
Direção: Ron Howard
Roteiro: Vanessa Taylor
Elenco: Amy Adams, Tierney Smith, Glenn Close, Sunny Mabrey, Gabriel Basso, Owen Asztalos, Haley Bennett, Freida Pinto e Bo Hopkins
Muito esclarecedora a sua crônica. Já assisti o filme e fui totalmente envolvida pelo drama de sua vida. Esse aspecto político que você aborda me acrescentou informações pra entender o contexto da eleição desse mandato. Obrigada. Excelente crônica.
ResponderExcluirHá muita política acontecendo por fora, mas lá dentro, é só cinema, investigando personagens e suas histórias.
ExcluirNão vi o filme. Gosto do diretor. Mas não acredito na história (ou estória). Não acredito que seja possível sair da miséria e chegar onde esse senhor chegou por esforço próprio. Vou ver o filme, pelo diretor.
ResponderExcluirDe fato, o diretor traz uma ótima credencial para filme. O recorte da trajetória do personagem é bem restrito. Cobre a sua infância e o período em que está deixando a faculdade. O vemos antes de ficar famoso.
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