O Infiltrado: remake hollywoodiano de um filme francês

Cena do filme O Infiltrado
O Infiltrado: direção de Guy Ritchie

UM HOMEM FURIOSO E ENVOLTO EM MISTÉRIOS

Realizar um filme de ação é como preparar uma pizza. Antes que você engasgue com a arrogância da minha afirmação, deixe-me desenvolver essa metáfora gastronômica. Um pizzaiolo cuida de preparar a massa conforme a tradição, para mantê-la saborosa, crocante e com a textura que todos conhecemos. Depois, usa um molho com personalidade e aplica um bom muçarela. Por fim, usa a criatividade para cobrir sua obra com as mais inusitadas combinações de ingredientes, a gosto do freguês. Mas há limites: extravagâncias descaracterizam o produto. Para não servir uma gororoba que apenas vagamente lembre uma pizza, o pizzaiolo sensato tem que se ater ao... arquétipo da pizza. Usar apenas ingredientes consagrados.
        O diretor de um filme de ação segue a mesma receita. Pega um mote envolvente, concentra-se na essência do protagonista e destaca os elementos dramáticos que desencadeiam a ação. Depois, recheia seu filme com os ingredientes que todos os amantes do gênero esperam degustar: tiros, lutas, perseguições, trombadas, explosões... Temperos como suspense, romance, mistério, sensualidade e pitadas de humor dão personalidade ao filme. Mas há limites: excesso de abordagem psicológica, visitações ao mundo interno dos personagens e complicações narrativas descaracterizam a obra. O diretor pode acabar com um drama denso nas mãos, aborrecido para quem só quer um pouco de entretenimento.
        O diretor inglês Guy Ritchie é um craque dos filmes de ação e não tem medo de experimentar novidades. Notabilizou-se pelo estilo extravagante, que o projetou quando lançou o ótimo Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e depois em Sherlock Holmes, O Agente da U.N.C.L.E. e O Pacto, entre outros. A presença do seu nome nos créditos de O Infiltrado, filme que dirigiu em 2021, foi motivo suficiente para pôr a pipoqueira para funcionar e acomodar-me no sofá diante da TV, à espera de ótimo entretenimento. Ele veio, mas a mistura de ingredientes que degustei não trouxe o refinamento que esperava.
        O Infiltrado marca a quarta colaboração entre o diretor Guy Ritchie e Jason Statham, o astro dos filmes de ação que costuma atuar em uma diversidade de filmes – alguns de qualidade sofrível. Aqui, porém, a dupla abandonou o tom de comédia e buscou uma abordagem mais sombria. Os adolescentes que esperam mais do mesmo, acharão o filme complicado e confuso. Os cinéfilos mais exigentes sentirão falta de profundidade no protagonista, que jamais se expõe para além das emoções primárias.
        A ideia para o filme partiu de Guy Ritchie, depois que ele assistiu ao filme francês Le Convoyeur, dirigido por Nicolas Boukhrief em 2004. O diretor percebeu a oportunidade de realizar um remake com sotaque hollywoodiano e escreveu o roteiro. Mais tarde convocou seu amigo Jason Statham para definir a caracterização do protagonista. Mas antes de entrar em detalhes, é preciso estabelecer a sinopse de O Infiltrado: o filme conta a história do misterioso Patrick Hill, chamado apenas de H. Ele começa a trabalhar para uma companhia de transporte de valores que teve dois de seus vigilantes assassinados dois meses antes, durante um trágico assalto. Acontece que H tem habilidades extraordinárias e na medida em que impede outros assaltos ousados – e se torna um herói para seus colegas – percebemos que ele está no novo emprego com segundas intenções e usará de toda a violência que puder para alcançar seus objetivos.
        O Infiltrado apenas parte da premissa estabelecida no filme francês que o inspirou. Lá o protagonista é um sujeito comum, sem habilidades militares, que tenta descobrir quem é o infiltrado que facilitou a ação dos assaltantes de carros blindados. Aqui, ele é... Jason Statham, um homem misterioso, com passado explosivo e moral duvidosa, capaz de atos extremos. Os assaltantes, por sua vez, não militares treinados, desprovidos de escrúpulos e capazes de ousadias insanas.
        Guy Ritchie e seus corroteiristas, Marn Davies e Ivan Atkinson, elevaram a octanagem da história. Transformaram O Infiltrado em um thriller de vingança, onde o espectador não sabe realmente para quem torcer – apenas pode escolher entre os que parecem menos malvados. As habilidades narrativas do diretor, no entanto, nos levam a construir empatia por H, na medida em que os detalhes da sua trajetória são expostos em doses homeopáticas, com flashbacks e flashfowards explicativos, mas dramaticamente pertinentes.
        Essa narrativa não linear deixa a história intrigante e traz uma certa elegância ao filme, mas o ar de mistério em torno do protagonista ficou tão denso que jamais temos certeza de quem ele realmente é, ou a que tribo pertence. Senti falta de profundidade emocional em H, um homem tão corroído pelo desejo de vingança, que terminou desprovido de qualquer grandiosidade. Refiro-me àquele tipo de personalidade impulsiva, porém contida por fortes princípios éticos e morais, que habitava nos clássicos de ação dos anos 1970, principalmente os estrelados por Clint Eastwood. Aliás, a aura de Eastwood está muito presente neste filme, na estampa de seu filho Scott, que interpreta um dos assaltantes – o mais psicopata deles!
        Meu veredito? O Infiltrado é um filme esquecível. Guy Ritchie é um diretor habilidoso, sabe lidar com os clichês e os usa com criatividade, mas aqui ele nos entregou uma pizza com textura pastosa. Adicionou ingredientes demais, que escorreram pela massa e não a deixaram crocante. Preferia que predominasse o sabor de um protagonista melhor desenvolvido.

Resenha crítica do filme O Infiltrado

Título original: Wrath of Man
Título em Portugal: Um Homem Furioso
Ano de produção: 2021
Direção: Guy Ritchie
Roteiro: Guy Ritchie, Ivan Atkinson e Marn Davies
Elenco: Jason Statham, Holt McCallany, Jeffrey Donovan, Josh Hartnett, Laz Alonso, Raúl Castillo, DeObia Oparei, Eddie Marsan, Scott Eastwood, Darrell D'Silva, Babs Olusanmokun, Chris Reilly, Andy García, Niamh Algar, Eli Brown e Rob Delaney

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