A Paixão de Cristo: respeitoso, honesto e intenso

A Paixão de Cristo: direção de Mel Gibson
CINEMA OFERENCENDO UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA INTENSA
As palavras sempre me fascinaram. Quando criança, costumava me entreter com uma brincadeira singela: escolhia uma palavra qualquer – por exemplo, “banana” – e a repetia mentalmente milhares de vezes. Depois de um certo tempo, as sílabas deixavam de fazer sentido e a palavra perdia qualquer vínculo com a imagem que representava; virava uma massa pastosa, capaz de assumir outra forma qualquer – por exemplo, a de um carro vistoso que acabara de passar na rua. Chamar um carro de banana, agora era perfeitamente possível. Vejam só! Ainda que tivessem vida própria, as palavras estavam sujeitas aos meus desmandos.Em escala global, isso também aconteceu com a palavra “paixão”. Vinda do latim “passione”, significava o ato de suportar um sofrimento; de sofrer por causa de algum mal, seja no corpo, seja na alma. Foi o que Jesus Cristo experimentou durante a crucificação. Com o passar dos séculos, a palavra também foi usada para designar uma emoção forte, tão intensa que se sobrepõe à razão; ligou-se a imagens positivas e agora também significa um tipo de amor ardente, vivido com entusiasmo e sensualidade por aqueles que abrem mão da lucidez para se entregar de corpo e alma às suas predileções – como fazemos nós, os apaixonados por cinema!
Como fomos de um extremo ao outro? Deixo que os etimologistas se preocupem em encontrar as respostas; o que não me impede de lançar suspeitas. Aposto que foi a necessidade de atenuar o martírio de Jesus Cristo, nascida nos seus seguidores da vontade autêntica de demonstrar respeito – e nos seus detratores, do desejo de rebaixar a importância do seu sacrifício. O fato é que agora, falar em paixão de Cristo soa mais eufemístico do que falar em sofrimento de Cristo. A enormidade que ele sofreu ficou diminuída pela estatura do seu heroísmo; pela grandeza da sua santidade.
Eis que, em pleno ano do Senhor de 2004, vem o ousado do Mel Gibson e realiza o filme A Paixão de Cristo, uma obra destinada a resgatar o significado da palavra “paixão”, conforme era empregada nos primeiros textos cristãos, para descrever com precisão as dores e o sofrimento de Jesus. Nada de eufemismos! A violência ganha expressão gráfica e o horror transborda incômodo, para que o espectador sinta o impacto do suplício devastador experimentado pelo Cristo.
O bom de escrever sobre o filme A Paixão de Cristo é que não precisamos nos preocupar com spoilers; ele narra as doze horas antes da morte de Jesus Cristo (Jim Caviezel). A história é bem conhecida: começa com a passagem no Jardim do Getsêmani, conhecida como Agonia de Jesus; depois vem a traição de Judas Iscariotes (Luca Lionello), a excruciante Flagelação no Pilar, o sofrimento de Maria (Maia Morgenstern), as mãos lavadas de Pôncio Pilatos (Hristo Naumov Shopov ) a Via Sacra, a crucificação, a morte... O filme encontra espaço para flashbacks, que mostram a Última Ceia o Sermão da Montanha e alguns episódios iniciais da vida do Cristo. Para encerrar, vislumbramos o que foi o milagre da sua ressurreição.
Mel Gibson concebeu A Paixão de Cristo como um filme honesto; voltado principalmente para os não religiosos, veio com a missão de chamar o espectador para uma reflexão em profundidade sobre a mensagem de Cristo. As motivações do diretor foram claramente espirituais – passava por uma fase conturbada, onde pensamentos suicidas eram diluídos pelo vício em álcool. Mergulhou no tema da crucificação e leu o que lhe caísse nas mãos. Caíram também alguns sinais, que interpretou como divinos. Para estruturar seu filme, agarrou-se nos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, mas também no livro A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, escrito no começo do século XIX por Santa Ana Catarina de Emmerich.
Para ajudá-lo a estruturar A Paixão de Cristo, Mel Gibson convocou o renomado escritor Benedict Fitzgerald, que se especializou em adaptações literárias; já escreveu diversos roteiros para o cinema e para a televisão. Os dois encontraram um método de trabalho intenso e colaborativo, que resultou numa criação conjunta. Tomaram uma história amplamente conhecida e deram a ela um tratamento épico, sem jamais esquecer os vínculos de intimidade que o protagonista mantém com o espectador. O roteiro terminou estruturado em três atos: o primeiro cobre os eventos da noite, o segundo os da manhã e o terceiro os da tarde, durante a crucificação.
Os diálogos de A Paixão de Cristo foram inteiramente escritos em aramaico, hebraico e latim. A ideia inicial do diretor era exibir seu filme sem legendas – denotaria respeito, fidelidade às escrituras e o caráter de honestidade histórica –, mas elas acabaram adicionadas no corte final. A fotografia assinada por Caleb Deschanel é de uma expressividade comovente; reverente e coerente com toda a iconografia construída ao longo de dois mil anos de cristianismo. A música de John Debney nos alcança em nossas camadas mais íntimas e nos põe em uma postura quase litúrgica. Quanto à direção de Mel Gibson, é segura, madura e eficiente; a de um cineasta consciente de que precisa entregar um espetáculo audiovisual completo.
O que vemos em A Paixão de Cristo é um Jesus submetido a castigos tão cruéis, que somos levados a desviar o olhar; ainda que o façamos, jamais deixamos de perceber a presença do divino. Na medida em que é abusado, Cristo se fortalece. Sofremos com ele, principalmente quando nos damos conta de que isso nos abre as portas para uma dimensão espiritual – a que nos faz humanos, nos separa dos animais.
Por outro lado, muitos enxergaram detalhes que não estavam na mira dos realizadores: antissemitismo; apologia à violência; foco na imagem de Cristo como mártir; desprezo aos demais personagens da trama... Bobagens! Apenas parte de um esforço coordenado pelos detratores do cristianismo, que continuam insistentes nestes últimos dois mil anos. O fato é que A Paixão de Cristo oferece cinema de qualidade; uma produção caprichada, séria e respeitosa, com um elenco competente e dedicado a nos proporcionar uma experiência religiosa intensa.
Em termos comerciais, A Paixão de Cristo foi um sucesso monumental; custou 30 milhões de dólares e arrecadou vinte vezes esse valor – uma das maiores bilheterias daquele ano. Isso fez dele um dos filmes independentes de maior sucesso na história do cinema. Em termos culturais, o impacto foi ainda maior; abriu caminho para toda uma leva de filmes e séries baseados na fé cristã, voltados para o público religioso e para os simpatizantes – cinéfilos que, como eu, estão aguardando ansiosos para conferir A Ressurreição de Cristo, filme que Mel Gibson pretende lançar em 2026.
Resenha crítica do filme A Paixão de Cristo
Título original: The Passion of the ChristAno de produção: 2004
Direção: Mel Gibson
Roteiro: Benedict Fitzgerald e Mel Gibson
Elenco: Jim Caviezel, Maia Morgenstern, Hristo Jivkov, Francesco De Vito, Monica Bellucci, Mattia Sbragia, Toni Bertorelli, Luca Lionello, Hristo Naumov Shopov, Claudia Gerini, Fabio Sartor, Giacinto Ferro, Olek Mincer, Roberto Bestazoni, Sergio Rubini, Francesco Cabras, Giovanni Capalbo, Rosalinda Celentano, Jarreth Merz, Luca De Dominicis, Chokri Ben Zagden, Sabrina Impacciatore, Pietro Sarubbi, Giuseppe Loconsole e Dario D'Ambrosi
Ameeeii sua crônica, concordo com cada palavra, e admiro seu respeito ao Divino!! Parabéns e Feliz Páscoa!!
ResponderExcluirPaixão de Cristo não é apenas um filme — é uma experiência profundamente comovente e poderosa que deixa um impacto duradouro no coração e na alma. Mel Gibson, Jim Caviezel e tds os envolvidos, superaram todas as expectativa e produziram uma Obra de Arte!!!
Muito obrigado, Priscilla! Feliz Páscoa! Está sendo ótimo esse reencontro com o Divino. Viva a fé! Viva o cinema!!!
ExcluirExcelente crônica Fábio. Mel Gibson foi corajoso em produzir esse filme num meio que hoje é avesso a muitos valores cristãos. Principalmente com essa leitura literal e honesta como você bem destacou. Uma feliz Páscoa a você e todos os que acompanham seu trabalho.
ResponderExcluirValeu! Feliz Páscoa pra você também! Além de realizar um filme importante, em defesa dos valores conservadores, Mel Gibson fez um ótimo cinema. Muito bem dirigido!
ExcluirAté vi o filme novamente. Obrigada por me lembrar de ver esse filme em época de Páscoa. A reflexão é sempre mais intensa quando acompanhada de uma obra de arte tão bem realizada.
ResponderExcluirSim, foi muito bem realizada. Uma obra construída com sensibilidade artística, respeito e reverência. Ludy e eu assistimos novamente nesta Sexta-feira Santa. Foi emocionante.
ExcluirConforme sua sugestão assisti o filme na sexta feira santa. Fiquei realmente maravilhada pela qualidade do filme em todos os aspectos mencionados por você. Mesmo conhecendo a história de Cristo, a emoção que senti foi tamanha que não contive as lágrimas. Sua crônica? O que falar nesse momento que vivemos na terra? Nos instiga a reflexão... Parabéns pelo seu trabalho e feliz Páscoa meu amigo.
ResponderExcluirObrigado! Viva o cinema! Viva a reflexão! Viva a fé!
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